#29 cartas e crônicas do regresso
sobre os retornos, os caminhoneiros, o menino jesus, e o Natal
Recentemente, voltei para a casa dos meus pais para as festas de fim de ano. Pela primeira vez, em um longo tempo, tive remelas nos olhos. Em São Paulo, não tenho remelas. Acordo em um pulo, me preparo e já saio. No Rio, me espreguiço, em uma sensação de eterna ressaca e maresia. Meus olhos fecham mais. Meu corpo cai em lentidão. Não sei se é por conta da sensação de ninho, ou térmica.
Conversando outro dia com uma amada, ela me relatou a mesma coisa. Depois de anos sem voltar para casa-Campos, ela dizia que se sentia em uma eterna ressaca, mesmo sem ter ingerido uma gota de álcool. "Uma ressaca que vem do encontro com aquilo que a gente deixou, e com uma parte da gente que só existe naquele lugar".
Também fui a Niterói esta semana reconhecer uma amiga que tinha acabado de voltar de uma longa temporada na Europa. Digo reconhecer, porque antes, a conhecia com os bares nas calçadas e o bandeijão da faculdade de Paris ao fundo. Agora, a conheceria perante as construções de Niemeyer, de costas para o Rio, em seu habitat natural niteroiense. Era um outro sorriso. Uma outra pele. Uma outra instância.
Na volta, passamos em uma livraria e avistamos o mesmo livro "Crônicas do regresso", nos entreolhamos, e rimos. ///
Ando refletindo muito sobre o gênero textual das cartas. Gênero literário dialógico que nasce com o intuito de estabelecer uma conversa. Um diálogo entre duas pessoas. Ou duas instâncias da mesma pessoa - espero a minha que escrevi no dia 31/12/2022 chegar, inclusive, ansiosa.
Duas instâncias de mim que ainda não se conhecem. Que não precisariam se conhecer, se encontrar, que existem sem uma a outra. Mas a carta pressupõe uma conversa. Um pouco como a vida, feita para o coletivo, podendo ser vivida de maneira sola, mas sempre fruto de uma legião.
Outro dia, escutei pela primeira vez também a palavra marginália. Que, em latim, designaria as anotações as margens do texto impresso, em um livro. Na marginália aconteceria o encontro do leitor com o livro. E por mais que nem todos sejam adeptos deste processo, eu penso que nada é mais justo do que o livro se alterar, depois do leitor já ter se modificado também. Um pouco como a vida, como as cartas, e como os contos de regresso a casa dos pais. Dos avós. A primeira casa.
Tentamos imprimir um pouco de nós, um pouco do novo naquele texto já impresso em mar e maresia, para continuar tomando fôlego em meio ao oceano que nos habita.
Mas longe de mim achar que o novo está apenas em mim. No eu que partiu. Que se partiu ao meio. E ficou. E foi. O novo também está no velho. No antigo. E em todas as histórias de família que você nunca escutou. Perguntou. Anotou. Re-Conheceu.
Nesses momentos, me emociono e me recordo do livro do José Henrique Belucci sobre o pai, O que é meu. O pai caminhoneiro, profissão de herói esquecido. José sociólogo. Já tendo ministrado aulas na Europa, com doutorado nos Estados Unidos. "É muito contraditório porque quanto mais sucesso você tem na sua carreira, mas você se afasta dos seus pais". José então decidiu retornar, em marginálias orais para a vida do pai, e pela história do Brasil em seu entorno. Uma vida gigante, que se se multiplicou com a história agora impressa.
Me lembro também da dissertação e do atual doutorado de Ana Clara Damásio em Antropologia, que se dedica a estudar as mulheres de sua família. Uma etnografia familiar sobre as véia, cair pra idade, e tomar de conta, em Canto do Buriti. Damásio também foi uma das primeiras pessoas da sua família a ingressar na faculdade, e perseguir os caminhos acadêmicos. Em suas entrevistas, ela diz que tudo importa, nos relatos, até os silêncios - e isso aprendi com ela - . Toda pausa. Toda atenção.
Nesse natal, convido vocês a darem cadernos e ouvidos aos seus e as suas. A celebrar a oralidade. As falas na mesa de trás pra frente, que recontam histórias. Instâncias em sépia das mesmas pessoas ali na mesa. /// Decidi comprar dois cadernos, um para minha mãe, e outro para o meu pai. Vermelho e verde. Que os acompanharão na esquina da cama todos os dias. Ao lembrar deles, vão lembrar de mim. Assim como eu, que ao lembrar de mim, também vou lembrar deles.
Também recomendo que na falta de pressa do fim de ano, cheio de remelas, vocês possam levar suas crianças e adolescentes para andar de ônibus. Conhecer o Centro da cidade em que mora. Apontar o dedo para Candelária, enquanto perguntam “O que é isso?". Ouro bruto em forma de curiosidade.
No mais, lembrar dos nossos, que ainda virão e que já aqui estão.
Feliz Natal,
B.
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Indicações da semana:
📖 Indicação de livros: O que é meu - José Henrique Bortoluci
🎧 Indicação de Podcast:
❤️ Indicação de Youtube: meu canal está de voltaaaaaaaa
ps: com uma retrospectiva dos livros mais importantes da minha vida + tour pelas minhas estantes (e instantes) hehe, não esqueçam de olhar olhar o descritivo do vídeo, caso queiram adquirir algum livro citado porque todos os links para a Amazon estarão lá, me ajudando a ter crédito na plataforma, e consequentemente, gerando mais conteúdo pra vocês :)
Um beijo, considere apoiar a news, menina, leu até aqui, é porque gostou.
À benção, fiquem com o menino Jesus.
Bia, emocionante seu texto e cheio de verdade e profundidades da alma. Seu olhar está cada dia mais brilhante. Te amo