Recentemente, alinhei dois filmes sobre culinária e gastronomia para assistir. Aliás, explico a diferença das duas palavras, porque talvez ela não estejam tão claras para todos. Culinária é a arte de cozinhar, o ato de criar pratos e receitas que posteriormente servirão até de características para determinadas regiões, como a culinária francesa, tailandesa ou mexicana.
Já a gastronomia é a ciência da cozinha, que envolve desde as diferentes técnicas de preparo dos alimentos até os aspectos que dizem respeito ao papel social que a comida tem nas nossas vidas. Tanto é que as universidades, pensando em oferecer um ensino mais completo aos futuros cozinheiros, optam pela grafia faculdade de gastronomia.
Após esse breve lapso de Aurélio, indispensável para a crônica de hoje, volto as minhas duas escolhas cinematográficas da semana. A primeira, o filme Estômago (2007) e a segunda The Menu (2022), com direção de Marcos Jorge e Mark Mylod respectivamente. Já adianto, ambas as produções me embrulharam o estômago — com permissão do trocadilho — porém, por motivos bem diferentes.
Estômago — um dos melhores títulos de filme nacional dos últimos tempos — te conecta pelo bucho com a jornada do vilão-herói Raimundo Nonato, um caipira que muda-se para São Paulo na esperança de ter uma vida mais digna. Em pouco tempo, o protagonista arruma um trabalho como faz-tudo em um bar de esquina, onde tem o seu primeiro contato com a cozinha, e com pastéis de carne e coxinhas.
"Esmaga essa massa que nem bunda de mulher", berrava o dono do bar enquanto ensinava Raimundo a render mais quantidade dos ingredientes fornecidos. Depois, o protagonista vai até o balcão e começa a conversar com Iria, uma trabalhadora do sexo e cliente do bar, que enquanto come uma coxinha literalmente gemendo de prazer revela que tem um repertório culinário bem reduzido. No que Nonato automaticamente retruca "assim, não dá nem pra casar", e escuta de Iria o mais belo, "foda-se".
As cenas que sugerem conexões entre o consumo de comida e o consumo de corpos femininos são infinitas, levando a um dos finais mais escabrosos e inesquecíveis que já presenciei em memória. Entre algumas reflexões sobre violência, ambiente gastrônomico e porque não masculinidades, o filme me remeteu bastante ao conceito do referencial ausente, proposto por Carol J. Adams a escritora do livro A política sexual da carne (2018).
De acordo com Adams, que propõe uma ligação entre o ato de comer carne com o próprio patriarcado, a função do referencial ausente é manter a carne dissociada de qualquer ideia de que ela já fora um animal. Processo que também ocorre com as mulheres que em nossa cultura também são vendidas em publicidades e pornografias dissociadas com o seu caráter humano. Dessa forma, o livro mostra como os animais são consumidos- literalmente, e como as mulheres são consumidas-visualmente, por meio do acesso sexual de seus corpos.
Já The Menu é um desafio de sinopse, que não foge nem um pouco da pauta gastronômica, violenta e masculina. O filme narra a história de um grupo diverso, — mas não tão diverso assim economicamente — que visita em uma ilha remota, o restaurante de um chef aclamado para um menu de 4h25 minutos. Daí para frente tudo acontece, e com a permissão dos spoilers, o menu acaba sendo eles mesmos.
O filme é uma crítica perfeita aos críticos gastronômicos, aos críticos dos críticos gastronômicos e todos aqueles que banalizam a arte e rejeitam aquilo que pode ser entendido enquanto o simples perfeito. Ou seja, os alimentos nutritivos populares e deliciosos, como um cheeseburguer, que acaba sendo o grande salvador de uma mulher, no filme.
Infelizmente, a coxinha para viagem não pode livrar Iria das mãos de Nonato, como Erin se safou com o seu cheeseburguer. Trazendo mais uma vez a máxima que você precisa viver o "grande" para as vezes, entender aquilo que muitos podem chamar de "pequeno".
Retomando a diferença entre a culinária e a gastronomia, a primeira é o começo de tudo, iniciada por mulheres dos mais diversos jeitos e cantos, muitas vezes com os elementos mais simples possíveis, para garantir a nutrição dos seus. Enquanto o último foi apropriado na maioria das vezes pelo patriarcado se tornando um ambiente hostil, opressor e dito como "grande", que só enche os olhos de quem vê.
Fico com as coxinhas e cheeseburguers.