#12 entre o ser o estar
para além dos diminutivos, o português também carrega a sutileza da presença
Trabalhando mais um domingo aqui em Paris, enquanto servia a vigésima segunda champagne para alguns senhores e senhoras já devidamente alcoolizados, percebi que me utilizava constantemente de uma expressão quase inútil para os franceses: en train de que, na minha tradução completamente livre de rigor e regra, significa algo do tipo no trem de, ou seja, em movimento, ou no mais popular português: gerúndio.
Explico a necessidade. Aqui na França, assim como nos Estados Unidos e em muitas outras nações do norte global, ser e estar existem em uníssono. Ou seja, com apenas uma expressão verbal, être ou to be consegue-se resumir uma existência e um estado de espírito. Um pecado para qualquer amante da gramática ou com tendências mais sensíveis de alma.
Tenho até teorias particulares com respeito as origens desse fenômeno. Acredito que nos Estados Unidos e na Europa Ocidental o determinismo social já foi e continua sendo (olha a beleza do gerúndio aí) muito forte. Tanto é que, pelo menos aqui na França, o seu sobrenome herdado pelos seus pais é o seu nom (Veloso) e a sua singularidade vem enquanto um acessório pré-nom (Beatriz).
Ou seja, aqui, o seu estar no mundo está profundamente implicado com o seu ser logo após o nascimento, muito diferente do cenário do sul global que por mais que opere em castas possuí um caráter de manejo bem maior devido a sua colonização, aquilo que não se herda, se constrói. Assim, só agora entendo perfeitamente a necessidade de Sartre de ter instituído o pensamento existencialista, que ia na contramão de qualquer rastro de essencialismo, de excesso do ser, com um estar e estar sendo aniquilado.
Fui atrás das origens do nosso refinamento linguístico existencial e tentei procurar origens no tupi, mas não encontrei. Tenho certeza que existem, mas realmente não encontrei e estou disposta a oferecer prêmios altíssimos a aquele que me enviar. No lugar, achei uma explicação das expressões latinas onde o verbo stare que significava estar de pé tem sido usado no sentido de estar em um lugar, e depois, metaforicamente, estar em um estado temporário. Mas nada é simples, e o infinitivo ser vem mais do latim sedēr, que significa sentar do que do latim, esse tardio, essere também “ser”.
Logo, só me resta a comoção de ter sido presenteada a sentir em uma língua, seja de pé ou até mesmo sentada. A estar sendo algo que não sou, e a ser algo que não faço. Que abraça a complexidade e a beleza da finitude presente na eternidade. Afinal, no português, conseguimos ser doentes sem estar doentes, estar doentes sem ser doentes e, mais importante ainda nos tempos que correm, estar ricos sem sermos ricos e sermos ricos sem estar ricos.
No mais, mesmo sendo estrangeira e estando estrangeira, continuo brasileir(íssima).
Indicação de entrevista: A lost enterview with Clarice Lispector — New Yorker — "eu tava perseguindo uma coisa e não tinha ninguém que me dissesse o que eu estava perseguindo"
Indicação de filme: L'immensità (2022)