#17 a vontade de morder e a vergonha de mostrar os dentes
Ou o que existe depois da nacionalidade luso-brasileira
Ontem recebi a minha cidadania portuguesa. No meio de um parque nas redondezas do Le Bon Marché, enquanto observava duas crianças franco-mexicanas fascinadas pelo rodear de um peão. O arquivo Central do Porto tem o prazer de comunicar que o processo de nacionalidade foi concluído com sucesso, fecha aspas. Vitória aos lusitanos, extensão aos tupiniquins.
Devo confessar que esse email me encontrou em dor e calor. Dor em nome da suposta “necessidade” que tive de recorrer a algo que não legitimo imediatamente como constitutivo da minha identidade - até então incólume em brasilidade. E calor, pelo mesmo motivo. Quase um dilema hobbesiano, entre aquilo que seria minha natureza e aquilo que seria minha cultura - por direito ou por esforço.
Assim, me pus a refletir sobre aquilo que sempre me levou para fora de meu epicentro de origem. A procura pela identidade. Que após ser convencida por Achille Mbembe, entendi com muito pesar que nem existe. Mmembe, em sua natureza filosófica, se recusa a encontrar algum afago na tentativa falida de uma identidade em substância. Para o pensador camaronês, deveríamos nos concentrar menos nas nossas identidades, e focar mais em uma direção comum, atrelada ao grande futuro.
Logo, “concluído com sucesso” o transe identitário, me concentrei no aspecto prático da mais nova façanha citadina. Ou seja, o que mudaria na minha vida para fora dos meus devaneios existenciais. Aterrando o excesso de água em meu mapa astral e genético, encontrei o Passaporte Index. Um site voltado para a seleção, classificação e ranqueamento de todos os passaportes do mundo.
Dentro, pude constatar e comparar que fui promovida da classificação global “de poder” - literalmente escrito - 11, ocupada pelo: Brasil, Argentina e Chile, para a classificação 3, representada pela: Bélgica, Dinamarca, Portugal, Noruega, Polônia, Irlanda, Reino Unido, Estados Unidos e Nova Zelândia. Não é preciso nem fazer muito esforço para saber em qual grupo eu me sinto mais identificada, por mais que agora tenha ganhado a serventia de agente dupla.
Também pude comparar no mesmo espaço digital, as diferenças existentes naqueles com menos ou mais “poder”, concluindo que muitas vezes, o novo apartheid depende da cor dos passaportes e não da cor da pele, como já diria a filha de imigrantes somalianos e italiana Igiaba Scego: “Viajar não é fácil se você não nasceu no país certo. No nosso planeta tecnológico e incivil, está em vigor um verdadeiro apartheid de viagem. Se não tiver o passaporte certo, a vida acaba na fronteira. Você é um incômodo, um perigo, uma praga, alguém cujo caminho deve ser barrado”.
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Assim, observando as meninas franco-mexicanas que cuido todas as semanas, me questionei, se um dia, poderia me considerar luso-brasileira. Não só no papel, como também na língua. Na vontade de falar. Tateando os meandros que existem nessa pós-cidadania. Nesse nascimento próprio, provindo de uma idéia de nascimento dos meus ancestrais, que nunca nem conheci. Um panorama muito diferente de ter pais franceses tendo nascido no México, por exemplo.
Sinto esse assunto extenso em largura, altura, comprimento, tratados e estreitos. Podendo expandir territórios sem fronteiras definidas pela geopolítica, perpassando a literatura, e se estendendo até a psicanálise. Por isso o calor da benção mencionado de um privilégio de estar bem cotada em um ranking de poder endiabrado, com a dor de identificação a um fantasma colonizador que dizimou a outra metade de quem eu sou.
“vontade de morder vergonha de mostrar os dentes vontade de morder vergonha de mostrar os dentes vontade de morder medo de mostrar os dentes vontade de mostrar os dentes medo de morder” (Pedaço do meu próximo livro, Torpedo, pela Editora Urutau).
No mais, agradeço a todas as mulheres de minha família que moveram literalmente - mundos e fundos - e atlânticos para que horizontes nascessem para aqueles que ainda nem habitam essa terra. Riqueza que se acumula como peão que rodeia, mesmo cambaleando, pro mesmo lugar.
Indicações da semana:
Indicação de série - Nova temporada de The Marvelous Mrs Maisel - Amazon Prime
Indicação de livro: Fronteiras: Territórios Geopolíticos da Literatura e Geopolítica - Editora Dublinense
Indicação de Podcast: Meu inconsciente coletivo - Nova Temporada