Ontem, escutando um podcast, e caminhando ladeira abaixo em direção a feira da minha rua, me deparei com uma frase. Eu quero ter uma vida que caiba na minha vida. Em um esforço contra a gravidade parei o passo automático, e me senti contemplada. Explico. O episódio era sobre os desafios e as bençãos de se morar sozinha. No que, uma das apresentadoras dissertava sobre a própria decisão de, mesmo com um filho pequeno, não ter qualquer tipo de ajuda profissional nas tarefas domésticas.
“Eu quero ter uma vida que caiba na minha vida, entendeu? Eu não quero ter uma vida que não caiba no que eu sou capaz de dar conta. Eu não quero ter uma vida surreal. Eu quero ter uma vida que eu lave minhas roupas, em que eu cuide da minha casa, que eu também tenha a obrigação de uma casa limpa”.
O debate é extenso, e englobaria aqui outras questões como a síndrome do “não repara na bagunça” e a pseudo necessidade brasileira de ter a casa brilhando todos os dias. Colocar as cadeiras para o alto. Passar pano no chão. De segunda a sexta. Ou até mesmo a necessidade de ter tantas profissionais da limpeza-faz-tudo-babás que rodeiam grande parte das classes mais abastadas do Brasil. Resquícios de um país ainda imerso em uma mentalidade colonial e escravocrata.
(Lógico que aqui abro e fecho dois parênteses para dizer que, com o ritmo de dez, doze horas de trabalho, principalmente fora de casa, é justo voltar para o lar, e ter uma casa limpa, quando se pode. Principalmente mulheres, que sempre geriram os âmbitos domésticos, próprios e alheios, e depois do século XVIII, no mundo ocidental, tiveram que dominar oficialmente as máquinas, enquanto os homens guerreavam nas guerras dos homens).
Mas a questão que eu gostaria de me atentar aqui é sobre o pleno discernimento de ter somente aquilo que se gere. Aquilo que se alcança. Aquilo que se pode dar valor. Porque em tempos de reviews de casas milionárias e superexposição de posses e de bens, lares estão se tornando empresas, escondidas em dois subsolos com mesa de sinuca e tubarão em aquários. E aos poucos, a noção de lar, de local onde se ascende o fogo, de lareira, se esvai nos gélidos cômodos vazios, ou por vezes, instagramáveis, vide a última polêmica pré Sonza, da Dora Figueiredo com a Doma arquitetura.
Tenho para mim, das poucas coisas que aprendi nessa vida, que só conseguimos dar valor a algo quando dedicamos nosso olhar a algo. É a conhecida e antiga lógica da contemplação, que se tornando um artigo de luxo hoje em dia, foi raptada em prol de uma superexposição do privado e do alheio em cada celular e ausência de qualquer vazio ou silêncio.
Entendo meu local e privilégio ao propagar a palavra do tenhamos menos visto que sempre tive o suficiente e até o muito. Mas é que para o futuro existir, para nós, precisaremos ter menos. Diminuir o passo. Expandir o olhar.
No mais, no menos, que possamos ter a quantidade de roupa que consigamos lavar. Alimentos que não estraguem na geladeira por falta de atenção. Tempo para se esticar numa rede. Silêncio para se conectar com tudo que se faz com as mãos. E o olhar, que alcance o céu como um breu pontilhado.
Referências no texto:
Podcast PPKansada - No dia em que eu saí de casa (Spotify)
Indicações da semana:
Indicação de livro: Mormaço - Nina Camargo (<3)
Indicação de série: The Bear - Star+ (obra prima tá)
Indicação de podcast: No dia em que eu saí de casa (PPKansada) - Spotify
Incrível !!! ❤️