#24 se um som alongado é música, uma vida alongada é celebração
entre crises e balas desejos, lembro-me de Sri Sri Shankar
Semana passada, ao abrir meu notebook - como costumo fazer todos os sábados, para escrever aqui - só conseguia avistar um apagão. Um breu. Fosco. Seguido de uma rachadura traçada no LED que, quando se encostava, criava coágulos na retina do aparelho, e do meu coração, aflito. Confesso que, a vista outros compromissos naquele dia, deixei ele descansando, na fé inabalável e silenciosa daqueles que acreditam que tudo vai dar certo, basta esperar mais um pouquinho.
Assim, cumpri minhas responsabilidades do dia, comi um delicioso risoto al funghi em família, cheguei em casa, liguei para o 0800 da marca, e descobri que o pior havia acontecido. A tela-retina-coração havia quebrado mesmo. E o preço do conserto equivaleria a um novo, em muitos lugares.
Ainda não consertei. Ainda não comprei. Ainda não faço ideia de como o quebrei. Um pouco como ver um ferido na calçada, mas não alcançar a colisão que o fez se projetar ao chão. E por isso, escrevo este texto em um aparelho temporário, que faz birra para ligar comigo, e que talvez já já será substituído por um outro. Nesse meio tempo, ando um pouco temporária também.
O irônico da história é que o texto da semana passada era sobre celebração.
Explico. Em casa, no final de semana passado, minha colega de apartamento bateu na minha porta, me chamando para assistir uma aula sobre meditação online. Nem pensei duas vezes. Em dois passos já estava em seu quarto, em cima da cama, de pernas enlaçadas, mãos no joelho e pés virados para o céu. No que entendi que, antes da meditação guiada, haveria um vídeo-palestra com um monge budista tirando dúvidas em um evento em Nova Iorque.
No vídeo, Sri Sri Shankar falava sobre o sentimento de amor e o sentimento de divisão. O primeiro, causado pela devoção e o último ocasionado pelo ego. Ou seja, segundo o bhikku, o sentimento ligado a crença em alguma coisa ou algum Ser evocaria sempre generosidade, sentimento de pertença e partilha com olhar impregnado n´outro. Já o ego, em sua ideia, repartiria a própria pessoa em partes, a boa, a ruim, segregando a mesma do mundo ao seu redor, que se perderia em um olhar imerso em si mesmo.
Depois, ele seguiu definindo as cinco facetas corporais de acordo com os princípios do budismo. Estas seriam o corpo físico feito de alimento (anna), o corpo intuicional revestido de sabedoria e intuição (vijnaña), corpo dos pensamentos e das emoções (manas), corpo bioenergético (prana) e o corpo da bem aventurança (ananda). Todos responsáveis por proteger os seres, assumindo formas diferentes de acordo com o estado de consciência.
Mas o mais bonito de tudo pra mim foi quando Shankar chegou no ponto do pecado, com sua definição própria de “aquilo que traz sofrimento”. Assim como a espiritualidade, que ao contrário, te faria “chegar até você”. Ou seja, segundo ele, o sentimento de culpa seria completamente sem valor ao passo que ele não te aproxima de você. Dessa forma, ele terminou dizendo:
“quando se está em presença cada passo é uma dança, um movimento alongado.
Assim como um som alongado é uma música e uma vida alongada é celebração”.
Na hora, lembro de ter me afastado do quarto de minha amiga para chorar, de tão lindo que eu achei esses dizeres. Uma vida alongada é celebração. Pois eu, assim como muitas mulheres que eu sigo e admiro, temos muita dificuldade com o tal do celebrar. Assim que alcançamos algo, já avistamos os próximos algos. Não sobrando tempo para o descanso, para o almoço em amigos, para um banho quente, ou um suflê de chocolate feita com silêncio e calma numa tarde de quarta-feira.
Recentemente, tive muitos motivos para celebrar. Consegui a bolsa de estudos que queria, vivo na cidade que sempre quis experienciar, no meio do meu Brasil, estudando o que me move, com amigos por perto, e metas, sendo batidas em pleno último trimestre do ano. Como os números nas redes sociais, por exemplo, fruto de planejamento, esforço, e algoritmo. Que nessa semana, me pregou uma peça.
Tive um dos meus posts sobre memes & modas, um dos mais indefesos de todos os tempos, inclusive, invadido por um exército de apoiadores do ex presidente Bolsonaro. Com mais de cento e cinquenta comentários do dia pra noite em um dos meus posts. Lá me vi comparada com pessoas que de forma alguma me vejo pertencente. Porém, não deixei de me sentir culpada. Me afastei de mim. Me distorcendo inteira na frente de uma tela-retina já quebrada, assim como meu ego distendido. Esqueci das palavras de celebração Shankar, porque naquele momento não quis prolongar a vida.
E o resto é minha terapia de segunda.
No mais, o que eu queria regar e trazer para cá hoje, nessa manhã nublada de sábado, é que não esqueçamos de celebrar o pequeno. Que consigamos lembrar das palavras de Sri Sri Shankar sobre prolongamentos e danças de vida essa semana. Assim como trazer a memória o corpo ananda que existe exclusivamente para a boa aventurança. Para o esperançar. Para a contemplação, e celebração do hoje, em uma vida alongada, apesar de todas as culpas, que não te fazem chegar até você.
Se cuidem, e até mais.
Recomendações da semana:
🎥 Série-reality: Ilhados com a Sogra (Netflix Brasil)
📖 Indicação de livro: Véspera - Carla Madeira (Record)
“Há nas famílias uma demarcação de território onde as fronteiras dizem: daqui para dentro somos nós. Dentro é onde cresce um tipo de vegetação particular, que a um estranho parecerá mato, mas que na família é flor. E pode ser flor aos olhos do visitante o que é espinho entre os que se machucam faz tempo. As sonoridades também exigem ouvidos apurados ali, naquelas solenidades. Há entonações que vibram mágoas, e trinados de alegrias ou saudade.
Há sempre uma faixa de volume tolerado ao desrespeito, a textura da ironia consanguínea, os tons menores da tristeza e a resiliência do amor, quase sempre nas pausas, além do som, ora estridente, ora sutil, das entrelinhas. Coisas ouvidas na fermentação dos anos.
Nas famílias, desiste-se muito das palavras para evitar exílios e, assim, nascem desertos. Se, por um segundo, essa sintaxe de húmus própria da família Antunes fosse um tecido, poderia se ver, aqui e ali, a trama esgarçada, prestes a romper, sustentada pela malha rala das fibras” (2021, p.225)
Indicação de Podcasts:
espero que consiga abrir um vinhozinho no tapete & te celebrar essa semana! ✨❤️
Essa news me pegou em cheio, risos. Pensando nisso nos últimos dias... me mudei tem 2 semanas e só consigo pensar em ser "resolutiva" a todo momento, ao invés de celebrar os pequenos passos e curtir enfim, meu novo lar 😢