#25 uma ode à antropologia
no entremeio de todas etnografias, há de sempre existir o humano.
“Para a permacultura a colheita é um conceito expandido. Tudo é colheita: os erros, as falhas, as interações. Não apenas tomates e cebolas”. Carola Saavedra
Depois de um longo período tentando me encaixar - e porque não dizer, agradar - uma orientadora francesa que talvez não quisesse nem ser agradada, chegou um e-mail na minha caixa de mensagens. Bem da verdade, chegou um spam. O remetente não estava na minha lista de contatos da Universidade, e por isso, foi automaticamente rejeitado.
Só após mais um longo período, tratando minhas pendências, resolvi, em uma busca quase arqueológica, encontrar esse e-mail. Que era para ser meu, por destino ou por bondade. Nele, um professor francês, doutor em geografia, me dizia que estava interessado no meu projeto, e me convidava para uma reunião por Zoom. Seu nome era uma mescla de feminino com masculino, e não resisti a acabar com a surpresa do primeiro encontro sem antes pesquisá-lo no Google.
A primeira foto que apareceu era do projeto dele intitulado “Brésil”, com seu nome embaixo e uma fechadura no meio. Achei tão simbólico. Talvez ele fosse exatamente a chave que sempre faltou. Reparo que enquanto escrevo isso pode estar existindo um romantismo no meu discurso, e de alguma forma até defendo que ele exista. Explico. Quando se escreve uma dissertação, se pare um filho no mundo. E depois de quase dois anos de gestação, nada mais normal do que querer uma mão quente ao seu lado.
Nos reunimos por Zoom. 15h para ele, 10h para mim. Numerais de conforto mútuo, mesmo atravessados por alguns meridianos. Depois de uma extensa conversa, saí de lá com um calendário, planejamento, e dezoito perguntas sem respostas. Lembro que dancei no tapete da sala também. O mesmo que deitei uma semana depois em uma completa de crise de ansiedade. Mas vamos com calma, vamos aos poucos.
Monsieur S. me perguntou o porquê de eu estar indo ao campo fazer minha etnografia apenas duas vezes na semana. Ou seja, durante os dias da feira que preciso analisar que acontece aos sábados e domingos. E a resposta que eu não consegui traduzir para o francês, com vergonha, era que eu estava com medo do campo. Medo do desconhecido. De ter que sair da minha toca. De novo.
Nos últimos dez meses, eu já vivi em Paris, em algumas cidades da Espanha, no Rio de Janeiro e em São Paulo. E longe de reclamar disso, pois foi exatamente a vida que eu escolhi, isso me trouxe uma sensação de querer um pouco mais de estabilidade. De finais de semana com meias, no sofá de casa. Sem ter que me mexer muito. Porém, nos meus planos, vir ao Brasil, principalmente com uma bolsa de estudos, significa ter que sair de São Paulo e me deslocar à Bolívia que existe aqui dentro. Justamente o meu projeto. Estudar tudo que passa pela boca. A língua, a saliva. O idioma e a comida.
A antropologia é sempre uma migração. Ao outro. A si mesmo - que se reflete no outro, e vice-versa. Ao distante que se torna perto, e ao perto que se torna distante. E a migração, por sua vez, é sempre traumática. Pois, antes de atravessar fronteiras, o imigrante já é um emigrante, como dizia o filósofo argelino Abdelmalek Sayad. O êxodo consiste sempre em: “andar de novo por ruas nunca antes habitadas, a comer ingredientes nunca experimentados até então, e a falar de uma maneira que a língua desconhecia”. - Trecho da minha newsletter #21.
Porém ao mesmo tempo, que ela é o atravessamento. O gerúndio. A ponte. Ela só pode existir no presente. Como elaborei no meu caderno de campo, no final de semana:
“O principal motivo de eu ter pego o transporte público com certeza foi evitar gastos a mais. Porém, em um segundo momento, tão importante quanto, foi entender como funciona o fluxo de pessoas, dependendo do horário e do dia da semana, que se deslocam até o Brás. Naquele dia o que pude testemunhar foi uma floresta de cabelos brancos, acaju e lilases, vindo de velhinhos presentes no ônibus. Não consegui enxergar nenhum jovem, ou adulto que fosse, apenas eu e o motorista.
Enquanto prestava atenção nos passageiros, pude refletir o quanto a antropologia em muitos momentos me afasta da ansiedade. Pelo simples fato de que o seu exercício principal consiste exatamente nas mesmas ferramentas que psicólogos utilizam quando um paciente entra em um estado de crise. Olhe ao redor. Descreva o que você está vendo. Transcreva” -
E justamente por existir no presente que ela evoca tamanha solidão. Porque muitas vezes, na imensa maioria das vezes, o antropólogo é um corpo solto no mundo. Só. Evocando e traduzindo o que vê. Poliglotas sociais. No meu caso, por exemplo, observo famílias o dia inteiro comendo juntas, enquanto eu nunca como com a minha, fico apenas só, com os meus pensamentos.
*
E sempre bom lembrar também que para além da solidão, existe mais um desajuste. Pois se a antropologia exige um corpo só, esse corpo nunca foi de mulher. A minha profissão foi desenhada por homens brancos exploradores do século XIX, que nunca traçaram uma linha reta com o olhar para o chão. Com medo de passar por uma viela a noite, ou com minutos perdidos em frente a um espelho tecendo comentários para si mesmos sobre a própria roupa antes de ir a campo.
Por isso hoje escolho a calma. De alguém que reconhece todas as suas migrações. Seus primeiros olhares. E seu corpo sozinho. Vendo com muito mais carinho a colheita até aqui. De erros, falhas e medos. Anseios e receios, por todo lado, não apenas tomates e cebolas. Me apegando a lembrança de que a ciência que estudo é a única que preza por falar com e não com o falar de. Que se organiza pelo método indutivo, sendo instruída por quem se conversa, e não deduzindo concepções já preexistentes. Penso isso ser das maiores nobrezas.
nunca se acostumar. se camuflar. quebrar.
No mais, que nunca nos falte o espanto pela vida e que a viagem sempre nos guie para o fundo de todas as semelhanças. Pois no entremeio de todas etnografias, há de sempre existir o humano.
Se cuidem, e até a próxima.
Indicações da semana:
Livro: O mundo desdobrável - Carola Saavedra (quero ser definitivamente ela quando crescer mais um pouco)
Playlist: Quiero - Beatriz Veloso (heheh)
Podcast: Antro, Como Faz? - Ana Clara Damásio
bia, me delicio em te ler! às vezes pela pressa, pelo desalento ou pela desatenção eu pulo as milhões de newsletters que me inscrevi, mas as suas não... tem algo poderoso e manso no que você escreve, e ainda que por muitas vezes eu não entenda, aprecio. tenho até vontade de ser sua amiga, acho que ficaria te admirando como faço com as minhas ao te ouvir falar. um abraço no seu coração!
Bia você me faz admirar ainda mais a Antropologia, com a sua sensibilidade e jeitinho todo especial de colocar as palavras e percepções. Sempre que possível compartilhe, porque é lindo de (te) ler <3