Ontem, enquanto caminhava de volta para o metrô me dei conta de que havia perdido meu lenço. Apalpando o celular na minha bolsa pela segunda vez, em um curtíssimo espaço de tempo - sequelas de quem nasceu e cresceu no Rio de Janeiro por 23 anos - percebi que o meu lenço amarrado na bolsa não estava mais lá. Havia se soltado. E talvez, encontrado uma outra pessoa. Um outro chão. Um outro pescoço. Fiquei triste. De verdade. Como nunca havia pensado que pudesse ficar por um pedaço de pano de 10x15 centímetros, que havia custado dois reais.
Pensei em voltar para onde estava, e tentar refazer os meus passos. Mas a alienação dos corpos sempre em frente de São Paulo me fez inerte em meio a velocidade. Não voltei. Assim que sai do metrô, flertei com a ideia novamente. Voltar ao metrô. Voltar. Retornar. Recapitular. Mas algo me fazia seguir na direção contrária da perda.
A pressa era devido ao cinema. Meu encontro com Orlando - My political biography. O documentário livre inspirado no romance de Virginia Woolf para Vita Sacksville, por Paul B. Preciado. Imperdível. Pela história e pela adaptação. A biografia ficcional de Virginia narra a vida de Orlando, um aristocrata que ao completar trinta anos cai em sono profundo, e, acorda mulher. Orlando é mulher mesmo que ainda seja Orlando. Orlando perpassa três séculos no livro. Orlando persistirá por três séculos na vida. Nos mais diversos corpos. E é isso que Preciado retrata tão bem.
“La vie n’est pas du tout une biographie. Ce n’est pas une série d’episodes ou d’aventures sentimentales. Mais elle consiste en la métamorphose de soi-même. Se laisser transformer par le temps, en devenant non seulement autre mais d’autres. La première metamorphose revolutionnaire est la poésie. La possibilité de changer les noms de toutes les choses. La deuxième métamorphose, la plus profonde est l’amour”
"A vida não é de jeito nenhum uma biografia. Não é uma série de episódios ou aventuras sentimentais. Mas consiste na metamorfose de si próprio. Deixar-se transformar pelo tempo, tornar-se não só outro, mas outros. A primeira metamorfose revolucionária é a poesia. A possibilidade de mudar o nome de todas as coisas. A segunda e mais profunda metamorfose é o amor". - Trecho do documentário Orlando - My political biography
Enquanto estava no filme ainda pensava no lenço. Nos minutos de trailer que eu poderia ter voltado para buscar. Algo que eu nem sei aonde perdi. Uma fé cega em uma crença tateante de que poderia encontrar algo que não era mais meu. Talvez nunca tenha sido. Lembrei também do vendedor de milho que perdeu todas suas pamonhas e espigas na rua, por descuido, no caminho para o cinema. Mais tarde, ao final do filme, encontrei com ele de novo, com todos os milhos de volta no carrinho. Recém limpados, porém sujos. Sujos, porém recém limpados. Quando passei, ele me devolveu um olhar de cúmplice. De um crime presente apenas no mundo desdobrável da vida.
"no mundo desdobrável / a casa não é uma casa / a rua não é uma rua / a espera não é uma pausa / no mundo desdobrável / corre subterrâneo / teu nome em silêncio /” - Carola Saavedra - O mundo desdobrável
Recentemente, rompi completamente um resto de fiapo que ainda me conectava a alguém. Um alguém-lenço que nunca foi meu. E que eu entrava no metrô na crença tateante de o encontrar. Voltar. Retornar. Recapitular. Com qual pescoço ele pudesse estar. Mas, dessa vez, algo (um conjunto, no plural) me fazia seguir na direção contrária da perda. Abrir mão de vez.
Me vi em uma visão. Na Avenida Paulista andando sem sem sem sem sem parar. Encontrando e deixando coisas. Por mais que acredite no tempo espiral, recorri a horizontalidade dessa vez. Uma linha infinita. Enquanto dura. Me transformando em outras faces. Me conectando com a metamorfose da vida. Da poesia. E sempre por último, do amor.
O sol que nos alcança todo dia nos tira. Todo dia nos dá. Todo dia dor. Todo dia graça. Nada resta como o mesmo. Só o passo em direção a algo. Todo sólido vira erosão. Todo líquido se empedra. Existe um mundo desdobrável ocorrendo em burburinhos enquanto você habita no silêncio de agora. Sonho com um dia em que o encontrarei.
Me sinto tão no começo de tudo.
Recomendações de metamorfose da semana:
Livro: Orlando - Virginia Woolf e Virginia Woolf & Vita Sackville-West: cartas de amor
Documentário - Orlando, My political biography (Paul B. Preciado)
Música - SAOKO (Rosalia) Tela y tijeras, y ya Cógela y córtala, y ya
Se o lenço for uma anlalogia pra alguem foi um bom café dá manha que tomei hoje, meio espesso mais foi bom. hehe
Lindo, parabéns. Quanta suavidade e sutileza, poesia pura. Abrir espaço para o novo, desatar nós antigos, sabedoria que vem com a experiência.