Há três anos atrás, enquanto balbuciava minhas primeiras palavras em francês, com a boca ligeiramente fechada em biquinho, me deparei com um verbo. Se réveiller. Que no bom português, nosso de cada dia, significaria: acordar. A palavra se encontrava na prateleira dos demais verbos pronominais: se réveiller, se lever, se habiller. Com o primeiro indicando justamente a primeira ação consciente que fazemos todos os dias. Ou, ao menos deveríamos fazer. Deveríamos? O curioso é que mesmo acordando todos os dias, e dizendo réveillon todos os anos, não lembramos do significado da palavra. Por sinal, com raízes em nada brasileiras.
Naquele mesmo ano, trancada em casa, pude observar também um casulo imenso, preso em uma das árvores que compunham o quadro da janela do meu quarto. Nem sabia direito qual bicho poderia sair de lá. Borboleta. Pulga. Gafanhoto. Carrapato. Só me recordo de todo dia, ao acordar, olhar para ele - e ele me olhar de volta. Por puro narcisismo pandêmico, tracei uma relação pessoal como esse casa-ser suspenso no ar, e lembrei que, naquele ano, também realizava meu processo de metamorfose celular.
Nunca esqueceria do dia que, folheando as centenas de National Geographic's de vovó Clemente, li que as células do corpo se renovam a cada sete anos. Lá estava eu, em pleno 2020, com meus três cascos completos e desabrochados, em um casulo mundial.
Felizmente, o casulo se rompeu. E finalmente, acordamos para as ruas. Um acordar para os caldos de cana e pastel de feira aos sábados. De cinemas mais baratos às quartas-feiras. De metrôs exprimidos com corpos sambando em Carnaval nas terças. De colo de vó por perto aos domingos, contando as mesmas histórias. E de choros em transportes públicos nas quintas.
Porque de nada vale - o inverno de paris, as queimaduras nos pés, os livros de poemas, o cinema argentino, as paellas valencianas, os shows da Rosalía, o mochilão pela Espanha, as quarenta e três horas de terapia, vinte e nove livros, cinquenta e dois filmes, dois ralados de bicicleta, 30 newsletters e um mapa astral - sem a esperança.
A esperança de saber que o mundo não é. Ele está sendo. Todos os dias.
Ao se réveiller.
Feliz começo de tudo.
Obrigada por permanecerem comigo.
minérios
quando se planta é só esperança
esperança no moer dos ventos
na força dos coliseus
na bondade do amor
inesperado
a esperança é uma devoção aos deuses do futuro
regar é um sedimentar
das continuidades
das trilogias
das tragédias
da não aceitação de um fim
é um prestar culto a todos os seus eus anteriores
e continuar.
para colher o fruto de
pé.
(Poema em meu livro, Torpedo).
Meus favoritos de 2024:
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Categoria Audiovisual - (prometo que ano que vem divido em filmes e séries)
Um beijo, considere apoiar a news, menina, leu até aqui, é porque gostou.
À benção, não esqueçam da roupa branca e parte de baixo vermelha, Márcia Sensitiva já previu.
Hasta luego,
B.