#32 a vontade de crescer, ser homem e escrever
sobre mochilas amarelas, monastérios, tamara klink e coragem
“Capítulo 1: As vontades
Eu tenho que achar um lugar para esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim todo mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras - as três que de repente vão crescendo e engordando toda vida - , ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum.
Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever”.
///.
Acordo hoje com a cidade em silêncio. É domingo de manhã, e estou a quatro horas de distância dos meus. Enquanto escrevo essas palavras, encontro-me em uma espécie de monastério, no tempo em que espero minha casa ficar pronta. Engraçado ter escolhido este lugar para ficar, muito antes de ter começado a namorar essa palavra. Monastério. Lugar escolhido por aqueles que decidiram habitar um único caminho, mono. Freiras. Monges. Fechando todas as portas por detrás, sem poderem escapar - da própria voz.
Volto a Paris, para a minha quarta e última temporada de mestrado. E começo a reparar em alguns padrões na travessia. Sempre que parto do Brasil, escuto uma palavra, que se destaca das demais. Coragem. Fico brincando então, com essas duas palavras. Parto. Parir. Partir, que na conjugação no presente se enquadra enquanto um novo nascimento. E coragem. Esta última tão longe daqueles que de fato a sentem.
Porque a bem da verdade é que coragem é palavra que brota de fora. Da casca. Do outro lado dos muros do monastério. Na parte de dentro, o que existe é sempre o medo, que se molda em paz, quando se escuta a própria voz. Gosto muito quando Tamara Klink, em seu pequeno barco mar a dentro, dizia que não sentiu coragem em nenhum momento da sua travessia. Eu também nunca me senti corajosa, só lidando com essa palavra a partir do encontro com o outro, que me alertei de sua presença.
Mas se eu pudesse escolher um tipo de coragem para ter, escolheria aquela cuja definição seria “agir com o coração”. Se partirmos dessa etimologia, talvez eu possa ter encontrado, o que de fato eu sinto. Ao sair da minha casa. Do meu cheiro. Da minha língua, para ir na direção do diferente. Parto porque escuto uma voz que me guia para além de mim. Ou talvez essa tal coragem que outros possam ver de casca, eu chamaria da própria covardia, penso que essa diferença seja tão dual como um sopro.
La verdad és que siempre que atravesso las puertas del embarque me siento livre.
Comecei a newsletter de hoje com a primeira página de um livro infantil, chamado A bolsa amarela, da Lygia Bojunga. Espero que você o tenha reconhecido em toda sua infância. Nele, a protagonista Raquel recebe uma mochila amarela, e decide esconder suas vontades, aquelas que que iriam crescer por toda a vida se ela deixasse. A vontade de ser grande, ser menino e de escrever.
Eu já tive, tenho, e destenho todas as três acima, quase todos os dias. Vontade de envelhecer, e ter um sofá confortável com estantes altas de livro. Vontade de não ter medo do barulho do próprio sapato andando sozinha na rua. Vontade de tirar o bicho que dança na minha garganta. Crescer. Masculinizar. Escrever. No fundo, autonomia.
E quando penso na protagonista levando sua bolsa para lá e para cá, enquanto seus desejos aumentam e diminuem de tamanho, não consigo parar de me emocionar ao refletir sobre o que representa ser uma mulher de mochila nesse mundo. Ainda no ano passado, a venezuelana viajante, Julieta Hernandéz foi assassinada por ser uma mulher. Uma mulher com uma mochila nas costas. Uma mulher com uma bicicleta nos pés. Uma mulher.
A repercussão dessa tragédia tomou diferentes rumos no país, com o principal comentário sendo o: "mas também o que uma mulher estava fazendo viajando sozinha pelo Brasil?". E sempre que esbarrava nessa fala, sentia meu corpo inteiro tremer.
Viajando o verão passado inteiro sozinha, não foram poucas às vezes em que fui questionada em meus porquês. Começando com a minha família, sempre tão atenta e generosa. Mas você vai sozinha? Ninguém quis ir com você? E depois se prolongando em toda minha travessia, mas você está sozinha mesmo? Tipo sem nenhuma amiga? Namorado? Tem medo não? Para todas essas perguntas, oferecia um sonoro sim, alternado de muitos nãos. Um sim ecoante, que me guiava em vontade e bússola, e um não, que silenciava os demais ruídos.
Estaria fazendo um desserviço se dissesse que foi fácil. Tranquilo. Passeio na lagoa. Não foi. Para além de aguentar o peso de uma mochila amarela amarrando todas as minhas vontades pra lá pra cá, experienciei o quanto os homens podem se espalhar em espaços públicos ou privados, sem a menor culpa. Fui flagrada em mil esteriótipos ao dizer que era - brasileira -, pausa para o olhar malicioso em seguida, e posta em situações, no mínimo, exaustivas e frustrantes. Mas a vontade do meu sim, sempre me lembrava de todos os meus porquês.
Porque no mais, não há nada de errado em ser uma mulher que viaja sozinha. E muita das vezes, o caminho será apenas um só - o da própria voz. Que com sorte, proclamará as próprias vontades.
///.
“Fui andando e pensando que eu também queria ter escolhido nascer mulher: a vontade de ser garoto sumia e a bolsa amarela ficava muito mais leve de carregar”.(BOJUNGA, 2003, p.48)
Se cuidem, em autonomia e escuta.
Um beijo.
B.
Essa newsletter é uma homenagem a vida de Julieta Hernández. Imigrante e vítima de feminicídio em dezembro de 2023, no Estado do Amazonas.
Indicações da Semana #01
📚 Indicação de livros: A bolsa amarela - Lygia Bojunga
🎧 Indicação de podcasts: Elefantes na Neblina - Apaixonada por uma voz e um pensamento de um dos três homens que assumem o podcast. Quase vivendo um Her da vida real, que fase k. Porém, um fôlego dos meus últimos dias.
🎥 Indicação de filme (e vamo de zerar o Oscar): Past Lives - Há muito tempo não via uma fotografia tão bonita e uma montagem de filme tão perfeita. Uma verdadeira pintura do sentimento do imigrante que se reconhece em seus conterrâneos, mas que sempre os deixa, em prol de um outro lado de si mesmo. Se eu me identifiquei? Coisa pouca, vai. Roteiro fechadíssimo, mas com os sentimentos todos em aberto, atores belíssimos, que delícia, viu? Aproveita e segue meu Letterbox também, menina, aproveita que a mãe tá cinéfila.
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Lindo, amei!
Bia, o texto é belíssimo, e revela uma maturidade e sensibilidade únicas. Parece que foi ontem que comprei Mochila Amarela pra ti. Quanto orgulho da sua escrita e da sua experiência revelada. ❤️❤️❤️