Completo amanhã um mês na cidade das luzes. Assim, resolvi rever o filme que me trouxe até aqui. Eu digo, o filme que me embalou em lágrimas enquanto sobrevoava as duas cidades em que vivo. Rio de Janeiro. Paris. Sempre achei engraçado pensar em aviões. Seres metade anfíbio, metade ave, que se arrastam antes de voar. Mamífero, carregado de pessoas. Como se cada janela fosse uma cesárea explícita parindo um emigrante, que rompe em azul celeste.
O filme era Past Lives, estréia no cinema da diretora sul-coreana-canadense Celine Song. Que em sua primeira cena, irrompe com três personagens. Um homem sul coreano. Um mulher sul-coreana-estadunidense. Um homem estadunidense. Logo, vozes começam a confabular. Seriam os dois primeiros irmãos, e o terceiro o marido? Seriam os primeiros casados e o último o amigo do casal? Ou os dois seriam viajantes e o ‘branco’ seu guia turístico? Quatro da manhã? Pouco provável. A câmera vai chegando cada vez mais perto até que tudo que conseguimos alcançar é o rosto da protagonista. E o olhar que Song definiria enquanto uma"cosmic joke”.
Assim, o filme retrocede vinte anos. Para a Seoul, de 2000. Com uma família sul-coreana desejando migrar com suas duas filhas. Logo, o primeiro desafio se impõe. Escolher um nome ocidental. Na Young. Michelle. Eleonor. Nor. Nora. Nora Moon. É feita a tradução de si própria. “If you leave something behind, you gain something too”.
Na Young, dessa forma, expressa a sua mãe talvez um dos últimos desejos antes de se tornar Nora Moon. Ter um encontro com Hae Sung, “I will probably marry him". A mãe, em nome das memórias e do único pedido da filha concede um último dia com seu amor prematuro, em um parque. Estabelece-se assim, quem vai, e quem fica.
Doze anos se passam. Um Facebook. Uma guerra na Coréia. Uma mensagem. Hae Sung descobre que Na Young é Nora Moon. Posso te chamar de Na Young ainda? Retomam o contato. Através de uma sequência de códigos no teclado ocidental que geram palavras em coreano. É feita a tradução de Nora Moon em Na Young.
Aos poucos, as quatorze horas de diferença de fuso horário já não são suficientes para os doze anos separados. Querem se ver. Mas em qual língua? Ele prioriza o estudo do mandarim, e não tem pressa de conhecer os Estados Unidos. Ela não retorna a Seoul porque tem planos de conseguir seu visto permanente. Pausa. Má conexão. Ambos ficam inertes em seus corpos, e em suas ilhas, porém, nunca em pensamento.
“There's a word in Korean. In-yun. It means providence. Or fate. But it's specifically about relationships between people. I think it comes from Buddhism, reincarnation. It's an in-yun if two strangers even walk by each other on the street and their clothes accidentally brush".
A terceira década chega para ambos, e vinte anos após o último encontro, em um parque infantil em Seoul, Hae decide encontrar Na. Dessa vez, em outro parque, Madison Square. Aqui cabe a ressalva mais linda que eu poderia escrever, os dois atores que contracenam também estavam se vendo pela primeira vez. A diretora armou para que assim fosse, e todas cenas prévias foram gravadas a distância.
Após a tradução de um rosto criança à imagem em um laptop, para adulto em pessoa, ambos engatam a conversar sobre as vidas que se passaram até então. Na Young, agora casada, conversa sobre algumas questões referentes ao seu relacionamento internacional, "It's like plainting two trees in one pot. Our roots need to find their place”. Enquanto, Hae sugere que terminou com sua namorada coreana.
Ao chegar em casa, no final do dia, Nora Moon tem uma conversa com seu marido, proferindo uma síntese perfeita "I feel so not Korean when I am with him, but some way, more Korean?”. Assim, dão início a um dos diálogos mais emocionantes do filme. O marido de Nora diz que as vezes sente medo quando ambos vão dormir, porque ela as vezes diria coisas que ele não entende durante o sono profundo. Ela dormiria em coreano. Nora seria Na, em sonho. Como se existisse uma parte dela que ele não conseguisse acessar. Um rio que cessa em sua fluidez. A representação perfeita da falácia falida da fluência de uma língua. Ou de um corpo inteiro na sua frente.
Esse trecho me fez pensar em Lapso, um conto da escritora argentina Sylvia Molloy, presente no livro Viver entre línguas.
“Em que língua acorda o bilíngue? (…) Certa manhã, recém-desperta, comecei a falar com a pessoa que dormia ao meu lado e achei que não me entendia. Apenas sorria enquanto eu me empenhava em repetir o que estava dizendo, exasperada por não obter reconhecimento: parecia um sonho no qual achamos que estamos falando, mas as palavras não saem. De súbito acordei totalmente e percebi que havia estado falando na outra língua, a que ela não falava. Nunca soube o que eu queria ter lhe dito de verdade. E por que digo ‘de verdade’?".
Ser incompreensível para si mesma, e para o outro, em um lapso daquilo que seria a verdade em seu estado mais bruto. Só restando o silêncio.
Na Grécia antiga, os sábios que investigavam a espiritualidade acreditavam que existiam duas correntes de pensamento nesse mundo. A tradição do saber, e a do não saber. Dessa forma, os termos formais utilizados pela teologia até hoje seriam dois. Atafático, o caminho do saber, das palavras, conceitos e imagens. E a apofático, a via que se moveria para além das sílabas e cores, restando apenas o silêncio. No entanto, nenhum deles permitiria conhecer Deus em essência, sendo necessário, realizar uma “balança curadora” de um pouco dos dois. Penso que essa lógica também se aplica ao conhecimento entre os seres humanos.
No último dia de Hae, então, em Nova Iorque, Nora junto com seu marido o leva para jantar em um restaurante, formando o cenário que dá início a primeira cena do filme. Agora, já sabemos as respostas para as vozes. Horas depois, eles se despedem, a sós, enquanto o Uber chega. São dois minutos. Talvez um pouco menos. Sem vozes. Sem nenhuma palavra. Na mais completa penumbra da madrugada. Onde se sente tudo. Tudo que poderia ter sido. Tudo que foi. E tudo que nunca será. Um silêncio que simboliza aquilo que é maior. Deus. Amor. Destino. Providência. In-Yung.
Agora é ela que fica e chora por quem já foi.
Au revoir,
B.
Indicações Temáticas da Semana #04
📚 Indicação de livro - Eisejuaz - Sara Gallardo - Considerado um clássico da literatura latinoamericana, o livro narra a história de Eisejuaz que convertido por missionários noruegueses se torna Lisandro. Não tão diferente de Na Young e Nora Moon. Entre o xamanismo e o cristianismo, o wícchi e o castellano, o mato e a Bíblia, Eisejuaz profetiza sua ontologia, e os possíveis caminhos para o fim do mundo, escutando sempre as vozes e os guias que o chamam. Inesquecível.
🎬 Indicação de série - Cangaço Novo - Se o tema da newsletter de hoje são as línguas, eu me sinto na obrigação de convidar a escutarem um pouco mais o Brasil vaqueiro. Situado na cidade fictícia de Cratará, no Ceará, a produção da série é impecável, seguida das atuações e da trilha sonora. Me fez escutar Fagner por uma semana seguida e gritar na frente do espelho "Seu porra!” como se não houvesse amanhã.
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Esse filme é um encanto só. Adorei sua leitura dele <3
Eu estava ansiosa pela newsletter. Quando assisti ao filme e fiquei emocionada. Seu texto resgatou essa emoção. E chorei de novo.
Assim como eu estava esperando pela newsletter essa semana, fico ansiosa pelo seu conteúdo no Youtube. Não tenho redes sociais (decisão tomada há alguns anos) e encontrei você quando comecei a ler Clarice. E a maneira como você escreve me lembra muito "A descoberta do mundo".
Você é minha inspiração. Obrigada por nos presentear com suas palavras!