Nesta segunda-feira, a França se tornou o primeiro país no mundo a incluir o direito ao aborto na Constituição. Lembro, que no mesmo dia, pude testemunhar algumas mulheres saindo nas ruas em uma floresta de cartazes roxos, verdes e lilases, pedindo que o aborto fosse considerado um direito fundamental.
Ainda na mesma semana, concluí o livro O acontecimento, da francesa Annie Ernaux. Na história, a vencedora do prêmio Nobel de literatura, ainda com seus 23 anos, relatava a experiência de interromper uma gravidez, em uma França pré legalização do aborto. Na época, ela ainda estudava letras, e morava em Rouen.
Conforme os meses de gestação passavam, e a mesma não consegue dar fim e ao cabo daquilo que toma suas entranhas, é comum o sentimento de claustrofobia. Depois, as cólicas, as pernas encerradas, o livro fechado, e o corpo que treme. Por fim, o sentimento de ter sido atravessada pela experiência humana total.
"Terminei de por em palavras isso que se revela para mim como uma experiência humana total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo”.
O acontecimento é um livro de setenta páginas. Curto. Porém, cortante. Penso que as imagens que vi ali muito dificilmente sairão da minha cabeça. Ou do meu corpo. Creio cada vez mais nisso. Não nas frases que decoro, mas nos pelos que se arrepiam com letras alheias. O que atravessa o corpo. O que resta em memória.
Ainda esse ano, me deparei com uma frase que também me dilacerou. "Dor e culpa são as duas únicas coisas que perpassam a vida de toda mulher". Ponto final. Ponto cruz. Ponto em todas as minhas aberturas de mulher. Culpa e dor. Do primeiro grito de cada mãe com a testa dormente de parto até a culpa que se envolve em formato de bebê em direção ao seu colo. Desespero.
De todas as mulheres, apenas Bella Baxter não conhece o sentimento de culpa. Na trama, dirigida pelo grego Yorgos Lanthimos, a personagem após se suicidar ainda grávida no mar é resgatada por um cientista que reconfigura o cérebro do bebê ao corpo gélido da adulta. O resultado surreal é uma mulher com uma mente em aprendizagem, que ainda não foi corrompida pela dor, culpa ou vergonha.
Bella assim se descobre em suas primeiras palavras, prazeres e experiências, confrontando-se também com o mundo imperfeitamente formatado ao seu redor. Até que no final do filme, ela tem uma retomada de seu passado. Seu corpo de mãe com sua mente de filha. Seu corpo de filha com sua mente de mãe. Em um novo nascimento em si própria. Pois, toda mulher seria mãe e filha de si mesma.
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“Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento - que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado. Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte.
E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é algo inteligível e geral, minha experiência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros".
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No mais, que lembremos que a data de hoje foi inaugurada por costureiras e tecelãs que pediam pão para seus filhos e paz para que seus maridos voltassem das trincheiras, em pleno estopim da Revolução Russa. Nada tem a ver com flores, revista Claúdia, Banco Itaú ou PIX.
Pão, paz, interesse e prazer é o que desejo a todas nós.
B.
Indicações da Semana #06
🎧 Indicação de podcast: Lugar Nenhum - Rádio Novelo Apresenta. Neste episódio da rádio Novelo conhecemos um pouco a história da Eliza Capai e do João Pina que passaram por uma gravidez atípica, com um consequente aborto.
🎥 Indicação de documentário: A partir do registro de sua gravidez frustrada, Capai conversa com outras mulheres que tiveram vivências parecidas à sua, criando um potente e tocante coral de vozes que refletem sobre temas universais: vida, morte, luto e políticas públicas que nos afetam.
▶️ Indicação de vídeo: Todos os filmes que eu vi para o Oscar 2024. Esse é um vídeo extra por conta do Oscar, que esse ano, eu posso dizer que me empenhei: assisti todas as obras que concorriam a categoria de melhor filme (com exceção de um, e pra descobrir, você vai precisar assistir ao vídeo inteiro hihi)
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percebam que essa gatinha agora tem um apoia.se! a mona finalmente resolveu bancar tudo que faz no amor e tirar todo o traço de culpa.
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