#37 na academia de letras, quem assina pela primeira vez é a voz
ailton krenak, os rituais estar-em-casa e a oralidade
Rituais. No campo da antropologia e da filosofia, possuem muitos significados. Para o ensaísta sul-coreano Bin Chung Han, rituais seriam técnicas simbólicas de encasamento, que transformariam "o estar-no-mundo em um estar-em-casa". Assim, ao proporcionar um lugar mais confiável, eles seriam "no tempo, o que uma habitação é no espaço”. Acho que poucas definições encaixariam tão bem na posse do mais novo integrante da Academia Brasileira de Letras: Ailton Krenak.
Em um discurso histórico na última sexta-feira, cinco de abril, Krenak proferiu que o rito seria "tudo”, pois representaria uma das maneiras de instituir mundos:
“A ideia de ordem e de caos deve estar muito relacionada com a nossa capacidade de produzir sentidos, e a produção de sentidos é um rito. Uma reza. Uma oração. Uma procissão como diria o mestre Gil (…) essa ritualização da vida é o que nos dá potência para ir além da nossa rotina de produzir cotidianos. Produzir isso que nós precisamos para nos abrigar, comer, proteger minimamente, isso aí todos nós animais humanos somos capazes de fazer, mas o rito nos saca desse lugar que a gente podia chamar de ‘lugar comum’, e nos coloca num lugar de criação. Criação de mundos”.
Ritos transformariam, portanto, poesia em matéria. Idéias em substância. Redes suspensas em pleno tempo. Um estar-no-mundo em finalmente um estar-em-casa. Sensação de pertencimento mais do que necessária e buscada por uma figura da oralidade em uma academia das letras. Um contador de histórias, que não precisou escrever um parágrafo a punho para conduzir seu discurso além.
Assim, Krenak estendeu o discurso à meritocracia, “uma força das mais predadoras que temos em sociedade”, até o atual conflito em Gaza. Honrou a diversidade de pessoas que estavam presentes naquele jardim de gente humana que ele avistava, e expôs como enxergava a cadeira da academia, que longe de ser um simples objeto, transmutava-se em uma entidade, que contava as histórias daqueles tidos como imortais, “você poder ser requerido em um campo sagrado, é coisa séria", dançou Ailton com as palavras que de tão materiais eram imateriais.
‘Será que nessa cadeira cabem 300?’. Como dizia Mario de Andrade, eu sou 300. Olha que pretensão. Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar mais do que 300. Nesse caso, 305 povos, que nos últimos 30 anos do nosso país, passaram a ter a disposição de dizer: 'Estou aqui'. Sou guarani, sou xavante, sou caiapó, sou yanomami, sou terena"
Dentre as menções aos seus antecessores, saudou a eterna Rachel de Queiroz, primeira mulher a ocupar o posto de imortal, em 1977 - oitenta anos após a inauguração da ABL. Pausou em seu nome, conferiu alguns segundos de carinho a autora nordestina de O Quinze, e começou a bater palmas sozinho. Nos fazendo imaginar de fato uma sociedade mais "amorosa e cuidadora uns com os outros”, um encasamento do tempo. "Toda vez que eu me encontro em lugares que mulheres já colonizam, eu me sinto muito mais a vontade, é maravilhoso que estejam em maioria aqui, uma maioria gentil que pode tornar o mundo um lugar muito mais interessante”.
Em determinado momento, trouxe a figura dos griôs, guardiões africanos da história oral, ou nas palavras de Ailton,"bibliotecas de conhecimento que se movem", armazéns peripatéticos da história e da memória. Não poupando os escritores brancos consagrados, de Angola e de Moçambique, como José Eduardo Agualusa e Mia Couto: "Talvez uma hora eles contem uma historia para gente com o que eles aprendem com o grilots para escreverem histórias tão incríveis. Todo mundo que escreve livros incríveis, escutou a história de alguém que não escreve livro”, disse Ailton.
As histórias daqueles que não escrevem livros.
Em pleno começo de escrita, enfim, da minha dissertação, que aqui na França eles denominam de mémoir, me autorizei a procurar a origem do termo. Mémoir viria de memória mesmo. Transformar aquilo que foi escutado, olhado, cheirado e comido, em tato com a folha de papel. Documentar em forma física aquilo que já foi experienciado em um oceano de oralidade. Herdar tempos imemoriais.
Comme son nom l'indique, le mémoire de terrain trouve sa source dans un évènement observé sur le terrain. Les objectifs et les compétences à mobiliser découlent essentiellement de l'observation.
A memoir is any nonfiction narrative writing based on the author's personal memories. The assertions made in the work are thus understood to be factual.
Resgatei assim, em memória, minha primeira aproximação com a escrita, que havia se dado pelo caráter documental da coisa mesmo. Pisciana, na eterna falta de terra e das mutações aquáticas, encontrei no escrever um lugar de rito do não-esquecimento. Penso isso ser belo, ainda mais na língua portuguesa brasileira, e em tempos tão escapáveis. Mas hoje, reconheço o sentido daquilo que não é gravado. Daquilo que se torna corpóreo no tecido de todos aqueles que estão vivos, e não necessariamente versam a vida a partir do alfabeto.
Ontem, depois de um dia extenuante de leitura e escrita em um francês positivista europeizado, precisei sentir um pouco de sol e caminhar na rua. Me cansei das letras com tremas e precisava escutar algo do meu país. Escolhi uma playlist de samba para os ouvidos. Beth Carvalho. Zé Keti. Cartola. Nelson Cavaquinho. Dona Ivone Lara. E fui lembrar do que aprendo quando eu não escrevo.
No mais, a certeza e o aconchego de que Ailton faz do mundo um lugar mais amoroso e cuidadoso, permitindo que o estar-no-mundo vire um estar-em-casa para muitos de nós. Krenak assina o livro. Mas sua força está na sua voz.
E, "eu não quero contar mais histórias para vocês hoje a noite. Gratidão”
B.
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Adorei!
ouvir Ailton e ler você, eterno estar-no-mundo que se transforma em estar-em-casa.