#41 quando acaba a viagem do imigrante?
viver entre malas, flâneusear as ruas e habitar perto de lareiras
Recentemente, com o final do mestrado à vista, as perguntas que mais recebo são: e agora, meu amor? quando você volta? já tem data? saudades. Explico. Tendo finalizado quase dois anos da pós graduação, não haveriam mais vínculos óbvios entre o eu e aquela em que habito, a cidade de Paris. Mas, para além dessas perguntas, nós últimos dias, resolvi também mergulhar em outras. Como, quando acaba a viagem do imigrante? E para além desta, quais seriam as diferenças entre o turista, o intercambista e o imigrante?
No último mês na cidade luz, para além das leituras obrigatórias para a tese, repletos de livros de migração e alimentação, escolhi ter na mesa de cabeceira, Flâneuse, da ensaísta nova-iorquina Lauren Elkin. Na obra, a autora relata que morou em Long Island até os vinte e cinco anos, quando muda-se para Paris, e se descobre enquanto uma flâneuse.
Bem da verdade é que Lauren iria dizer que havia primeiro se tornado e depois descoberto a tal palavra que origina o livro. Flâneuse. Feminino do substantivo flâneur. “Sujeito errante e observador”, nas palavras de Baudelaire. “A figura do ócio masculino com tempo, dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata”, segundo Elkin. Seres que memorizariam as cidades com os pés, em termos próprios.
“Em minha ignorância creio que eu pensava ter inventado a flâneurie. Vinda dos bairros suburbanos dos Estados Unidos, onde as pessoas usam carro para ir e vir de um lugar ao outro, andar sem nenhum propósito especial era uma coisa bem excêntrica. Em Paris, podia andar durante horas sem nunca chegar a lugar nenhum. Eu vivia em busca de vestígios, texturas, acasos, encontros, fendas inusitadas (…)
Minha experiência mais significativa com a cidade não se dava com a literatura, a culinária ou os museus, e sim com todas essas andanças. Em algum lugar do sexto arroundissement, percebi que queria passar todo o resto da minha vida numa cidade, especificamente, em Paris. Isso tinha a ver com a total e absoluta liberdade que se instaurava com o movimento de por um pé diante do outro”. (2022, p. 113)
Lembro da primeira vez em que escutei a tal palavra afrancesada. Flâneur. Fazia ainda faculdade de jornalismo, e lia João do Rio, o primeiro da espécie em terras cariocas. Porém, nunca havia pensado na variante da palavra no feminino. Assim, ao ler o livro que descreve em pormenores o bairro em que vivia em Paris - uma das coincidências que compartilho com Lauren, para além da idade - muitas vezes me percebi em lágrimas. Não demorou muito para eu mesma, ocupar o lugar de flâneuse. Em um projeto pessoal, decidi sair com o terceiro olho no meio do umbigo.
Com a câmera apoiada no meu pescoço, percebi que podia ser confundida como turista, e assim, em um movimento de rejeição inconsciente, comecei a tirar fotos dos próprios. Na ânsia que os mesmos tinham de arrancar memórias da cidade, eu correspondia com desejo de transformá-los em pontos, não indivíduos, turísticos.
Até que no auge da minha ingenuidade, enfim, pude descobri a diferença que habita entre o flâneur e a flâneuse. Mulheres não poderiam andar pelas ruas e observar o mundo, sem antes serem observadas. Logo, não haveria espaço, canto, ou cruzamento para o caminhar errante. As ruas estavam infestadas de homens.
O ápice dessa constatação veio minutos depois. Ao sair de casa, e sentar para tomar um chocolate quente, recebo em meu airdrop cinco fotos. Quando abro, algum desconhecido havia me enviado capturas de mim. Ainda com chocolate nos lábios, e escrevendo sobre capturar homens e turistas presentes na rua, havia sido capturada por um. Ocupando o lugar da mulher no espaço público, de total desfrute daquele que aponta a máquina, ou o maquinário masculino.
Meu primeiro encontro com a cidade veio de um lugar de plasticidade. Observava Paris como algo belo. Porém, de tão belo, quase me era intocável. Aos poucos, o que era estético se tornou hostil por algumas experiências a contragosto. E no hoje, pela primeira vez, colho uma cidade afetiva e amorosa.
Me lembrei do meu primeiro dia, o motorista português me apontava o túnel em que Lady Di havia morrido, e logo após alcancei a Torre Eiffel. Guardei minhas malas, e saí para caminhar com uma amiga. Na época, fiquei muito desconfortável por não estar acostumada a andar tanto, e a comunicar as coisas que não gostava.
Que benção que é crescer. Hoje, fico, porque ando e também me comunico.
*
No meu último dia no prédio em que morava na cidade, decidi sair para caminhar em perpendiculares até então desconhecidas por mim. Ao passar por uma rua com lojas de tapetes e luminárias árabes, me deparei com uma placa pequena, em um hotel. Sigmund Freud, createur de la psychanalyse habita cette maison (1885 - 1886). Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, morou nessa casa (1885 - 1886).
Completamente paralisada, fiquei refletindo sobre o que significava morar em algum lugar. Conhecer o padeiro, ter uma árvore favorita no jardim perto de casa, não se sentir mais um estrangeiro. Fico com a definição de lar na maioria das línguas latinas. Lar, lugar perto da lareira. Lugar que você se sentiria aquecido. Quente. Assim, como Foyer, em francês, que viria do mesmo lugar, perto do feu.
Antes de me despedir, entrei no meu café preferido. A música que tocava era Samba da Benção, em minutos virei água. Na voz de Bebel Gilberto, escutava ////
É melhor ser alegre, que ser triste alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração. Mas, para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza se não, não se faz um samba, não. Fazer samba não é contar piada, e quem faz samba assim não é de nada, um bom samba é uma forma de oração.
Saí do estabelecimento, e na rua, fazia uma chuva muito fraca como as lágrimas que desciam em meu rosto. No caminho, avistei meninas que moravam no meu prédio, sorri, e elas me sorriram de volta. Dei um cookie para o rapaz que mora na calçada da rua desde que eu cheguei, e ainda estava dormindo, fechei os olhos.
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Só no último dia me encontrei com a palavra foyer, lar em português.
Perto do fogo, feu, perto da lareira.
Onde se habita.
(2022 - 2024).
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Indicações da Semana #12
▶️ Indicação de vídeo e livros: O único livro que li em maio - Honestamente, um dos melhores vídeos do canal para mim até agora, digno do melhor livro que li, em 2024. Como amei a sobreposição da voz com a filmagem dos prédios, e como pude ler a cidade como livro, e o livro enquanto cidade. Uma verdadeira benção, sou muito sortuda em vida, e isso posso garantir. Por lá, assim como por aqui, eu encontro os melhores comentários e as trocas mais gostosas <3
✏️ Indicação de Newsletter: News da
sobre a tal foto enviada a mim por airdrop. Ser novamente fisgada pelos olhares de Gabrielle foi uma das coisas mais mágicas que já me acometeram nos últimos tempos. Que cresçamos para além de estáticas estátuas de clichés masculinos, em mulheres que flanam em direção a própria cidade.🎵 Indicação de Música: Okay, talvez eu tenha uma música favorita. O comecinho dela parece que viro água e mergulho em um mundo diferente mesmo.
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Queria poder ser Flâneuse tbm no nosso país, ainda que não seja completamente possível em lugar nenhum do mundo para as mulheres, parece que aqui é impossível. Adorei o texto!
Uau. O tanto que eu gostei dessa edição. O texto, as fotos... Parabéns!