Albert Camus dizia que era preciso quinze dias para entender uma cidade, e trinta anos para se perder nela. Assim, passada a minha primeira quinzena em Lisboa, pude traçar algumas primeiras impressões sobre a cidade, que de tantas vogais em seu nome só se comunica a partir de suas consoantes. Pssageirs crtifiqum-se qu stão com s cints dvidament ajustads. Em brev, vams aterrare.
Aterrar, e não aterrissar. Logo, instaurou-se o primeiro estranhamento lusitano. Em busca pelo sossego e pelo mar, encontrei a terra. Telhados cor de telha. Trem.
A primeira casa em que fui recebida se situava no Largo da Graça, em cima de um bar com o nome de Desgraça. Mais tarde, lendo cartas de amantes portugueses da década de trinta, não pude deixar de notar a presença da tal palavra em todo lugar. Rapazes frustados, na ausência de reciprocidade, condenavam as senhoritas a tal infelicidade. Elas, em revanche, diziam que com eles, em desgraça padeceriam.
Após um desajuste de datas no calendário, precisei recorrer a uma segunda casa. Dessa vez, em Cascais, de meu tio Fernando. Irmão de meu avô Abílio, já falecido. Pai de meu pai. Por conta da distância geográfica e etária que nos separava, tive receio de como seria o nosso encontro. Contudo, tudo caiu por terra quando ele me contou sua história, viajando de carro, com nós dois mirando o Atlântico.
Fugindo do alistamento militar obrigatório em Portugal, meu tio avô Fernando foi parar no Rio de Janeiro com dezessete anos. Passei toda minha juventude lá, foram os melhores anos da minha vida. Entre clubes, carnavais e serpentinas conheceu minha tia Adriana. Trocaram cartas, casaram-se e tiveram duas filhas cariocas. Logo após, mudou-se para Luanda, na Angola, onde ficou por um ano, até decidir se mudar com toda família para New Jersey, nos Estados Unidos.
Por lá ficaram por vinte anos. Ele sapateiro, ela faxineira. Um bucado de tempo, assim foi. Para aposentaria, tio Fernando e tia Adriana, escolheram regressar a cidade em que nasceram. Carregal do Sal. Talvez para morrer onde se nasceu, pois.
No mesmo dia, reassisti a um dos meus filmes favoritos do últimos tempos. O marinheiro das montanhas, do diretor cearense Karim Ainouz. Sempre que retorno, choro por um outro ponto, de um lugar que nem sei por onde sai. Na história, ele relata a sua viagem para a Argélia, atrás de suas raízes cabiles, vindas de seu pai. Em formato de carta para sua mãe, que o acompanha por toda viagem, ele diz:
“Iracema,
Minha companheira imaginária. São 7:58 da manhã do dia em que eu avistei Argel pela primeira vez (…)
Eu espero um tempão na alfândega. Na minha vez, eu mostro o passaporte para o funcionário. Ele pergunta meu nome. Ele entendeu de primeira. Foi a primeira vez na vida que eu não precisei soletrar meu nome. Ele me pergunta para onde eu tô indo, e eu falo que vou passar por Argel e que depois eu vou para Cabile. Ele fica desconfiado, pergunta se eu tenho parente em Cabile. Eu mudo de assunto”.
Penso que pela primeira vez me conectei com uma parte da minha família que eu ainda não tinha avistado. A parte que em mim mais existe. O elemento migrante. Que na busca por ser, vive sempre entre malas e mares. Na voz de meu tio-avô de oitenta e três anos pude ver pela primeira vez, um fio que perpassa minha família, pulando uma geração. Uma textura muito diferente da minha parte brasileira que de tanto amor, sempre me quer por perto.
Em carta para um de meus amados, eu escrevo:
C'est beau de voir que la condition d'immigré n'est pas seulement en moi. Elle vit aussi dans la voix de cet homme de 83 ans qui me raconte avec enthousiasme tout ce qu'il a vécu. C'est beau de voir le français dans la bouche des Algériens du film et de tout comprendre. J'aime les mondes qui s'ouvrent devant moi, et vous en étiez un.
É bonito ver que a condição de imigrante não está apenas em mim. Ela vive também na voz deste homem de 83 anos que me conta com entusiasmo tudo o que viveu. É bonito ver o francês na boca dos argelinos do filme e entender tudo. Gosto dos mundos que se abrem diante de mim, e você foi um deles.
No que ele me responde:
Au sujet de la condition de l’immigration, je partage votre sentiment. Et j’ajouterai que seulement deux étrangers peuvent réellement se comprendre et parfois s’effleurer. Pour certains cela est un fardeau, mais si on dépasse le seuil de la douleur, on peut accéder à la richesse. Car pour ma part, je ne me sens jamais seul, je me sens proche des écrivains, des artistes qui aux travers de leurs œuvres, nous proposent leurs visions du monde.
Sobre a condição da imigração, compartilho seu sentimento. E acrescentarei que somente dois estrangeiros podem realmente se entender e, às vezes, se tocar. Para alguns, isso é um fardo, mas se superarmos o limiar da dor, podemos acessar a riqueza. Pois, de minha parte, nunca me sinto sozinho, me sinto próximo dos escritores e dos artistas que, através de suas obras, nos oferecem suas visões do mundo.
No mais, por meio do mar de Cascais, e das lágrimas de Cabile, pude avistar a graça de pertencer aos olhos daqueles que já fui.
E nada há de ser mais belo do que isso.
Até a próxima,
SOMOS 1.5 K!!!!!!1!1!!!!! se você me acompanha e gosta do meu conteúdo, considere entrar e contribuir com 10 reais mensais: https://apoia.se/bgvls (boatos que teremos em breve até podcast para assinantes shhhh)
Indicações da Semana #13
▶️ Indicação de vídeo e livros: Vídeo sobre as minhas leituras de junho: um mês muito experimental, romântico e amoroso para mim, como sempre deveria ser. Por lá, assim como por aqui, eu encontro os melhores comentários e as trocas mais gostosas <3
chamadinhos especiais
Insuportavelmente chique, eu tenho a honra de anunciar a vocês que agora eu sou uma parceira Escrevedeira. Sim, o espaço cultural criativo dedicado a escrita e ao desenvolvimento literário - fundado por ninguém mais, ninguém menos que Noemi Jaffe 🥲. Juro que tremo enquanto escrevo essas palavras, muita mais muita emoção de estar ao lado daqueles que admiro de todo meu coração.
E nesse mês já tenho meu lugar garantido no curso, que assim como essa news, fala de família. Com o título de Escrever mais uma vez, a mãe, Beatriz Resende nos conduzirá aos formatos literários inovadores e os limites tênues entre ficção, biografia ou autobiografia, dando enfoque nos livros de Tatiana Levy (Melhor Não Contar), Jamaica Kincaid (Autobiografia da Minha Mãe), Maria Negroni (O Coração do Dano) e Édouard Louis (Lutas e Metamorfoses de uma Mulher).
Se eu fosse você, conhecia a casa Escrevedeira caso resida em SP, e a plataforma com todos os cursos gravados, on-line's e clubes do livro. Ah, e não se esqueça de usar o meu código para 10% de desconto em todos os cursos do site: BGVLS10
Códigos atuais em cursos e lojas babadeiras:
EBAC - BEATRIZOFF (Aproveite os cursos com mais de 60% de desconto!)
Zerezes - BIAVELOSO10 (10% de desconto na coleção nova que está ABSURDA)
Cícero - VELOSO10 (aproveitar que o site tá com até 70% off + 10% de desconto<3)
Escrevedeira: BGVLS10 (tá, mas vocês entenderam que a Noemi Jaffe sabe quem eu sou?)
Voltar é sempre difícil, sobretudo pra viver antes de morrer. Parabéns tio Fernando <3
Vou assistir esse filme do Karin, e o texto, me lembrou Juan Rulfo em Pedro Páramo, acho que fiquei preso na volta. Belíssimo Bia <3
Você escreve muito bem! Foi um sentimento ler esse texto! Veio aquela sensação de sentir falta de uma coisa que ainda não fizemos.