#55 elas vieram do Rio de Janeiro brincar o carnaval na Ilha do Ferro
No sertão alagoano, o tempo se molda ao ritmo das mãos que se criam
A primeira vez que eu escutei sobre a Ilha do Ferro foi em um jantar com uma amiga. Tô sentindo que é pra você ir nessa viagem comigo, não sei explicar, mas sei que vai te fazer bem. No meio de garfadas, mesmo com a certeza em seu olhar, titubeei o convite. Fiz que ia pensar, e demorei um mês para traçar um veredito.
Na época do não, com vestes de talvez, ainda era dezembro, e eu não fazia idéia do que seria meu futuro ano ímpar. Até que nas vésperas do carnaval, analisando as minhas reais possibilidades - pular mil blocos com desconhecidos querendo ficar em casa, ou ficar em casa querendo pular mil blocos com desconhecidos, decidi fugir dos meus paradoxos no Rio de Janeiro, e me embrenhar no sertão alagoano.
dia 01
Saltamos no Aeroporto Internacional de Maceió, também chamado de Zumbi dos Palmares, em homenagem ao último líder do quilombo mais conhecido do Brasil, que pra minha completa ignorância, era alagoano. A viagem de carro até a praia de Pajuçara, onde íamos dormir as primeiras noites, era devidamente longa, o que nos serviu de muita serventia para puxarmos prosa sobre as principais dicas da cidade com o motorista. Olha, não se preocupem com segurança não, viu, moças? Aqui não tem risco nenhum, nunca fui roubado, nem vi ninguém sendo assaltado, dizia ele, enchendo o peito das três mulheres dentro do carro do mais puro fôlego.
Ah, aqui cabe dizer que éramos em três. Número sagrado e perfeito para muitas religiões, o princípio, meio e fim, ou no nosso caso, a dinâmica ideal de motorista, copilota e alguém responsável por atrocidades ditas no banco traseiro que não permitiriam olhos piscando no meio das estradas. Assim, nos primeiros dias, nos instalamos, descemos para comer tapiocas - com todas, sem nenhuma exceção, contendo o ingrediente coco —, e fomos explorar as praias do litoral: Paripueira, Guaxuma, Ipioca e Praia da Sereia, com uma estátua deste último ser folclórico e mágico, imenso em meio ao mar. Paramos o carro pro testemunho, inesquecível.
dia 03
Nos despedimos de Maceió em direção ao município de Piranhas, fazendo uma pequena mudança de rota, para uma visita ao povoado de Entremontes, conhecida também como a capital dos bordados. Minha amiga, que me estendeu a mão para fazer essa viagem, também estendia bastidores para o entrecruzar das linhas de bordado, e tinha visto no programa do Paulo Vieira um episódio só sobre a região — foi amor a primeira vista. Assim, com todas devidamente convencidas, o tal vilarejo de senhoras e crianças bordadeiras foi adicionado ao trajeto.
Aqui cabe dizer que muitas intempéries aconteceram no caminho, como estradas intermináveis de terra, que estranhamente não se acabavam com as previsões dos mapas digitais, nuvens cinzas que se orquestravam em músicas de Bethânia, e muitos recalculares de rota, até avistarmos, pela primeira vez, o velho Chico.
Estremecemos. Porém, mesmo com o céu entre nuvens, percebemos o colorido de Entremontes, nas crianças brincando carnaval, e nas mulheres que se entrecruzam em vida pelos seus bordados e poemários. Lembrei de um poema do meu livro:
bordadeiras o processo de criar algo // tece-lo dentro do útero // do ventre quente dormir acordar com a coisa // borbulhante em cabeça // em espinha criar uma ideia um lactobacilo // tátil um nascedouro // um tiranossauro // abstrato um carrinho // feito a gás por alunos // da engenharia // um suspiro um espacate // uma tapeçaria holandesa // um recém nascido // um criador.
dia 04
Em Piranhas, atravessamos o Chico, para conhecer a verdadeira trilha (com ênfase nas possíveis cópias) da rota do cangaço, onde Lampião, Maria Bonita e todo seu bando teria sido morto em 1938. Pra decorar, peguei o gancho que o guia dizia. Lampião era pernambucano, apaixonou-se por uma baiana, atravessou o São Francisco para morrer em Sergipe, perseguido pela polícia alagoana.
No dia seguinte, ainda brincando de pisar em Alagoas e Sergipe, fomos conhecer o Cânion do Xingó, formação geológica do Rio São Francisco, localizada na divisa entre os estados, e o maior do mundo em extensão navegável. Tudo incrível, salvo a decepção com a ausência de camisetas Fui em Piranhas e lembrei de você, <3.
dia 6
Hora de pegar o carro para a Ilha do Ferro. Povoado que é continente, mas é Ilha, e que, até pouquíssimo tempo atrás, contava com apenas quatrocentos habitantes.
A verdade é que a vila foi “descoberta” pelos neocolonizadores sudestinos recentemente, por volta dessa década. E por conta deles, confesso, eu também estava lá. Luciano Huck, CasaVogue, Museu do Pontal, ArtRio, e por último claro, sempre ele, o TikTok foram os principais responsáveis por pulverizarem a Ilha para o Brasil, enquanto o maior “polo de artesanato e arte popular" de Alagoas.
E aqui já vale a minha primeira ressalva de muitas. O que os moradores da Ilha fazem é arte, ponto. Sem a necessidade de uma etiqueta a mais produzida por uma elite brasileira, e porque não dizer, internacional, que pauta o que é a arte contemporânea. Em segundo lugar, sou muito grata por ter visto a Ilha em 2025, porque não sei até quando ela restará sendo a Ilha que conheci, com todos os burburinhos de gentrificação e diferenças na qualidade de vida que escutei.
Mas agora falando de encantamento, e guardando a acidez no bolso, a Ilha do Ferro foi uma das melhores viagens que já fiz na vida. Primeiro, porque não existem fronteiras definidas entre o público e o privado. Todas as casas dormem e acordam abertas que nem boca de gente, sem medo de ninguém acontecer.
Não existe a privacidade tão inabalável e comum aos centros urbanos. Ali todo mundo se viu, se conhece, e se integra em um grande contexto maior do que o medo — ou a vergonha. Depois, todos são artistas. Os homens talham as árvores, e inventam formas na madeira, e as mulheres colorem as peças. E por último, mas não sem importância, nunca tinha visto tamanha generosidade reunida.
dia 9
No último dia de viagem, quarta de cinzas, fomos bater no portão de Roxinha. Moradora do povoado vizinho a Ilha, chamado Palestina. R. Lisboa é hoje uma das maiores artistas alagoanas contemporâneas, e só "fez seu nome", como ela gosta de dizer, há três anos atrás quando um moço entrou pela sua porta, comprou quinze dos seus quadros e a palavra se espalhou. No ano passado, pela primeira vez, em terras cariocas, foi convidada pelo ArtRio para expôr as suas pinturas. Hoje, Lisboa vende seus quadros de dois a oito mil reais, mudando, aos poucos, a realidade e o fluxo de seus antepassados e descendência.
Quando chegamos no seu ateliê ficamos sabendo que Roxinha começou a fazer os quadros com 60 anos, e a primeira pintura na parede tinha o título de Mulher Ozada. Simbólico, simbólico. Depois, demos de cara com um quadro "Elas vinheram do Rio de Janeiro para brincar o carnaval na Ilha do Ferro - Ele tá tirando a foto delas". Nos olhamos e pensamos que era isso, que era nosso. Levamos.
No final, querendo saber sobre a possível existência de quadros menores a venda, minhas amigas conseguiram miniaturas para levar para casa. Mas só havia duas. Ô, minha filha, eu peço perdão mesmo, mas eu só tinha esses pequenininhos, agora só grandão mesmo. Até que escorrendo do seu olhar, avistei um quadrinho verde muito pequeno. Ela ci acha bem feita. Não perfeita. Ela se olha no espelho e se acha bem feita, era literalmente tudo que eu precisava ler naquele momento.
No final, voltei para casa carregando muitos plásticos-bolha e a necessidade de trazer a arte para dentro da vida. Seja em madeira, guache ou pique, como fazem os moradores da Ilha. Lembrei que o Brasil que me exaustava cabia em uma ponte aérea Rio São Paulo, e que ser brasileira é uma bênção concedida já no nascimento. Aprendi que, se o sertão é uma invenção, o cangaço é uma história,
— e do cangaço nasce cultura. E me dei conta de que tudo que eu precisava era de sensibilidade, e uma madeira pintada de verde para lembrar de me fazer bem.
Até breve,
Tinha saudades.
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Uau, somos 5.5K no Youtube! Se você está lendo isso, já me segue por lá? O último vídeo fiquei tão satisfeita não só com a repercussão, mas também com a produção que fiz, investindo nos melhores equipamentos, pensando em enquadramento, COISA LINDA, viu? bora que bora 2025
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que carnaval gostoso de curtir! adorei.
Que lindo! Fui imaginando tudo. Estava ansiosa para saber mais sobre essa viagem que eu só via fotocas lindas no Instagram. Mais uma vez: é o nosso Brasil. <3