Ontem, esse computador que vos escreve caiu de uma altura altíssima, criando um estrondo no quarto inteiro. Consequentemente, algumas cabecinhas internacionais e preocupadas surgiram no meu olhar me perguntando se eu estava bem, ao que o meu primeiro instinto de resposta foi um oui, oui, oui. Que no mais belo português seria sim, sim, sim - 3x sim, cultura livre por bala desejo, brincadeira, desculpa.
Ainda guardo alguns reflexos em francês no meu cotidiano, mesmo não praticando mais a língua com a intensidade de antes, pelo motivo geográfico dos últimos meses. Porém, nunca tinha percebido, até ontem, que ele apenas se manifesta quando eu estou em alguma posição de desconforto por ter feito algo de errado. Ou seja, situações em que me sinto culpada. Merde. Pardón. Desolé.
Assim, por falta de psicanálise, e por amigos que acompanharam a reflexão e me incentivaram a vir até aqui, reflito que: isso diz tanto. O francês foi, e é uma língua em que já me senti muito culpada. Por motivos burocráticos, acadêmicos e até mesmo condominiais. Porém, talvez, a maior culpa que carrego foi nunca ter alcançado o francês impecável, mesmo habitando aquele lugar por alguns pares de meses.
As vezes podemos habitar um lugar, e ele não morar em nós ao mesmo tempo. Foi um pouco isso que senti, eu acho. Alcançando níveis de clareza e identificação de quem eu era em oposição ao outro, branco homem europeu, percebi que eu nunca seria aquilo. E consequentemente, minha boca jamais abriria para falar daquele jeito ~ ideal. A ferida narcísica e intelectual estava posta e exposta, ao mesmo tempo em que ela também abriu espaço para que outros elementos pudessem romper na cavidade úmida.
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Depois do susto do computador, decidi usá-lo para permanecer então pelas próximas seis horas, em posição quase estática, acompanhando a viagem em família durante a tour do imortal Gilberto Gil. A nova temporada de Viajando com os Gil, disponível na Amazon Prime, acompanha, dessa forma, a turnê histórica do astro da MPB com sua esposa, sete filhos, genros, noras, 12 netos e uma bisneta por mais de 15 shows realizados em 10 países da Europa, com quase todos presentes no palco.
Aqui gostaria de pontuar duas coisas. A primeira, que não pude deixar de perceber, para além do belíssimo repertório de músicas entoadas pela família baiana, foi o profundo respeito à liberdade e autonomia de todos os indivíduos do clã. Com especial atenção as crianças, que com menos de dez anos de idade, já apresentavam uma clareza dos sentimentos dignos do patriarca que dedicou a sua vida inteira a percorrer e honrar as nuances dos afetos. Resultando na perfeita balança d’os Gil que existem justamente no artigo no plural, e no sobrenome no singular.
E a segunda foi a presença de Flora Gil. Casada com Gilberto desde 1988, (e sósia da Julia Roberts rs) ela se destaca ao longo de toda série como o maior pilar da família, posto que compartilha com toda gentileza e carinho com seu amado. Assim, se Gilberto é o principal artista no palco, Flora é a maestrina de toda a banda nas coxias. Pois sem ela, não haveria viagem, nem no gerúndio, muito menos com todos os Gil.
Logo, depois da maratona, me vi precisando encarar o mundo afora. Porém ainda carregando Gil nos ouvidos, com uma de suas primeiras músicas gravadas, que até então, eu ainda não conhecia. Se você disser que ainda me quer, amor, eu vou correndo lhe abraçar, seus beijos, seus carinhos, vivo a procurar, como o poeta busca a inspiração, nas noites de luar. Seguida da risadinha baiana inconfundível.
Comecei a pensar, então, que para além de pessoas, essa música também poderia se endereçar ao meu amor pelo Brasil. Se você disser que ainda me quer, amor, eu vou correndo lhe abraçar, seus beijos, seus carinhos, vivo a procurar, como o poeta busca a inspiração, nas noites de luar. E encarando o céu azul cobalto de Valencia, me senti deslizando pelas ruas, apenas guiada pelo sentimento de sentir as coisas mais belas ouvindo a música de meu país.
Se o francês já me trouxe culpa, o português me traz todos os antônimos possíveis desse estado de espírito. Virtude. Inocência. Perdão. Absolvição. Benção Translúcida. De ser o que se é. No país de Gil, Flora, Sereno, Bela e Preta.
Não adianta nem me abandonar.
Nem ficar tão apaixonada, que nada.
Que não sabe nadar.
Que morre afogada por mim.
No mais, ombros para trás, família, e fogo eterno para consumir o inferno fora daqui.
ps: o que faremos com a quantidade de crianças que serão registradas como Sereno na próxima década? Me incluo na estatística.
Indicações Temáticas:
Série: Viajando com os Gil (2 temporada) - Amazon Prime
Albúm: Retirante (Vol. 1) - Gilberto Gil - Spotify
Podcast: Mano a Mano - Gilberto Gil - Spotify
Livro: Todas as letras (Gil) - Companhia das Letras
Ah, e meu livro Torpedo ainda está disponível para os brasileiros <3
Ontem, logo após te enviar uma mensagem manifestando o desejo de te ver poetizando sobre a segunda temporada com os Gil, eu vim passear pelo meu perfil e caí no primeiro texto, que fala sobre a MPB e a consciência da finitude. Esse texto, em primeiro lugar, é dedicado à Gal. Depois, discorri sobre Gil e outros nomes que amamos. Nunca dá pra falar de um só, né? Todos se conectam por meio da música e do amor. Acho bonito essa rota, que ora é Gil, ora é Preta, ora é Gilsons, ora é Bethânia, ora é Gal e assim vai. Percurso bom e bonito de explorar.
Nesse mesmo texto, também abordei a primeira temporada da família Gil — e, confesso, não me lembrava. Se escrevi, me marcou. Ainda não dei play na segunda temporada, porque lembro que na primeira eu assisti quase engatinhando, porque não queria que acabasse. Nem comecei a segunda e o fim dela já me chateia. Mas, bom, vou trabalhar na ideia de só aproveitá-la enquanto ela dura, porque, no final das contas, é isso que importa: o processo. Na chegada do fim, a gente recomeça.
Um agradecimento especial ao Co—Star, que reafirmou que você precisava ter vindo aqui nos contar como foi assistir a esse espetáculo sob a sua ótica, que é sempre muito bonita.
Viva o nosso país! <3
eu amei esse seu texto e sua relação com a música <3