Terça-feira passada, apresentei um seminário de quase duas horas no programa de pós graduação em Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo. Eleita pelos estrangeirismos britânicos da Quacquarelli Symonds como a melhor universidade da América Latina. Para tal, levei três livros, trinta e três slides, e um cabide dentro do meu sorriso, para ilustrar todo o seminário.
Não consegui comer nada antes de chegar a universidade. Mesmo já tendo tido ensaiado para todas as minhas paredes, almofadas e livros, no mínimo, três vezes. Explico. Minha turma, por mais amável que seja, era composta por pessoas de alturas e envergaduras muito maiores do que eu jamais almejei estar perto. Alguns ali já haviam terminado seus doutorados, enquanto eu balbuciava minhas primeiras vogais.
Me recordo também que nos primeiros dias de aula, nesta mesma turma, me senti uma impostora ali dentro. Só consegui balbuciar meu nome, e da onde eu vinha. Mesmo assim duvidando até deste último. Nunca mais dei nenhum pitaco durante as sessões. Sentia que nenhuma pergunta era elaborada o suficiente. Nenhum comentário era tão original. Muito menos minha presença ali naquele espaço.
Até que encontrei um espelho meu no ponto de ônibus, na véspera da minha apresentação. Seu nome era Beatriz, e também estudava Antropologia. A diferença era que a minha homônima era mineira, e pós doutora em Ciências Sociais. Começamos então a puxar prosa enquanto esperávamos o ônibus. Eu com todos meus nervosismos e ânsias, e ela me escutando. Até que ela irrompe no meio de um silêncio: “Você sabe que esse nervosismo todo é coisa de mulher, né?". Fiquei estatelada como se tivesse que ter usado bhaskara para ir ao supermercado. “É, os homens não tem isso não”.
Resolvi, então, aplicar a teoria de gênero da minha recém conquistada parceira ao adentrar a sala. Inserindo pendrives no computador, pergunto ao meu colega que também iria apresentar o seminário se o mesmo estava nervoso. No passo que ele me diz com muita tranquilidade: “que nada, dou aula em escola há cinco anos”. Me deixando com um sorriso tão amarelo quanto de uma espiga de milho.
Lógico que não posso tirar a prova dos nove a partir de um testemunho masculino. Mas fato é que minha parceira Beatriz, do ponto de ônibus, tem mais do que um ponto em conduzir a discussão para os trilhos do gênero. Mulheres crescem tolhidas e reprimidas de expressarem suas opiniões. Desagradarem. Serem incisivas, ou até mesmo se colocarem no lugar de quem fala, e não de quem escuta.
Longe de mim acreditar em um espaço pedagógico baseado apenas na fala-escuta, quando nós temos a possibilidade da troca mútua. Mas esse não foi o caminho que fomos ensinadas. Justamente porque no mundo em que ainda vivemos, a horizontalidade é um artigo em extinção, presente na maioria das vezes em teorias e teoremas, e não entre relações de teresas e teodoros.
Acabados meus minutos de apresentação, me senti muito leve. Por alguns motivos. Talvez o mais imediato fora aquele de ter conseguido acabar algo que me gerava tanta tensão, resultando em um prazer instantâneo. Depois, de ter conseguido me expressar da maneira cujo a qual levo a vida, séria e informal, incapaz de fazer enxertos de máscaras no meu rosto que durem por muito tempo. Em terceiro lugar, por ter conseguido tratar do meu tema, respeitando um viés que para mim era caro: a questão de gênero, sem cair em um lugar comum ou estereotipado. E por último, por ter mudado radicalmente minha postura dentro daquela sala de aula.
Assim que me apresentei, vieram palmas, e um hiato de intervalo para esticar as pernas e lubrificar as gargantas. Não nos fazendo esquecer que até sendo máquinas acadêmicas, ainda possuímos coração. Na pausa, percebi que colegas vieram até mim, não que antes isso já não acontecesse, mas agora, eles conheciam um fragmento a mais de mim. Aquele que teoriza, produz e apresenta. Ainda que com percalços, quando duvida de si mesma nas coxias. E pela primeira vez, pude sentir que havia me sentado à mesa.
E que delícia é o momento que separa o sentar à mesa, do sentar na mesa. Porque muitas vezes a mesa já nos foi posta. Os úberes solicitados. As classes inscritas. Mas a conversão para o outro lado da preposição se mantém suspensa. Algo ainda falta para sedimentar. Instigar. Se abrir, para se deixar entrar. E nada, absolutamente nada, é mais lindo do que um encanto quebrado, em prol de uma pertencimento instaurado.
É a lei dos amores.
Que só consegue nascer depois das perguntas, e não das definições. No dinâmico e não no conquistado. No horizonte e não nas envergaduras.
No querer perguntar.
Nunca fui uma pessoa das perguntas. Por mais curiosa que fosse, sempre me esquivei desse próximo passo. Encarava o abismo da diferença, em silêncio. Me dedicava a apreciação daquilo que fosse belo ou estranho a mim, como se ainda experienciasse uma fase uterina, sem acesso a fala, apenas a contemplação do entorno da vida.
Lembro até hoje de uma querida professora, já na faculdade, que ao recortar uma manchete de jornal, expôs no quadro pra turma inteira ver. “O que tem de errado aqui?”. Na época, eu encarei o nome do veículo respeitado e automaticamente me calei. Em efeito de telepatia, ou farejar do medo, ela perguntou diretamente pra mim, “o que tem de errado aqui, Beatriz?” Não lembro do grau do problema, se era gramatical ou até moral, só sei que em um ímpeto, respondi “não me sinto confortável de criticar esse jornalista, porque ainda nem sou uma”.
Minha professora arregalou os olhos e falou comigo como se não tivesse mais ninguém na sala de aula. “Se você quiser ser uma jornalista, você precisa aprender a criticar, independente de qualquer coisa, ou de quem seja. Você pode fazer isso, ok?”. Nunca me esqueci desse dia. Nem de suas frases. Adriana o nome dela. Onde quer que você esteja, muito obrigada.
Hoje, aos poucos, consigo ler manchetes e apontar eventuais erros. Ler clássicos, não me identificar e passar para contemporâneos. Sem culpa. Sendo livre, no eterno caminho de todos os questionamentos, que aprendi a tornar até mesmo vocação. Aprendendo cada vez mais a fazer as perguntas importantes pra mim. Com clareza, firmeza, e quando posso, delicadeza.
Aprendi sentar à mesa levando cada vez mais as minhas, e os meus, assim como os teus e os deles. Seja numa disputa com o Uber sobre funk paulista ou carioca, ou em uma mesa de doutores sobre Darcy Ribeiro.
No mais, que levemos a mesa nossos ouvidos, mas não esqueçamos de afinar nossas vozes, com unhas e facas.
Até mais,
Só pergunta, quem entra na vida.
Indicações da semana:
Filme: A paixão segundo G.H. - Luiz Fernando Carvalho, Maria Fernanda Cândido (fizeram o impossível: o sensorial virar estético, escandaloso)
Série: FIM - Globoplay (Fernanda Torres despensa comentários)
Livro: FIM - Companhia das Letras