#28 empurrar o céu, pisar na terra e lembrar do sonho
perspectivas originárias em meio as ansiedades e maternidades climáticas
Você se torna adulto, quando começa a ver os seus pais enquanto adultos, e começa a se ver enquanto pai. Essa foi a frase que escapuliu da minha boca, enquanto tomava um suco de laranja entre amigos, no último final de semana. Na hora, lembro que meu amigo esbugalhou os olhos, como quem reverbera em cada cílio o que eu acabava de dizer. Ficamos em silêncio. Ignorei meu desejo de anotar no guardanapo aquilo que acabava de dizer, por pura vaidade de oralidade, e continuamos a devorar banoffes.
Você se torna adulto, quando começa a ver os seus pais enquanto adultos, e começa a se ver enquanto pai. Nem que seja pelo ventre da indiferença. Mas o exercício da prospecção da procriação é bem vindo. É imaginário. É biológico. Lembro que quando morava no outro lado do Atlântico, nenhuma das minhas amigas queriam ser mães. Para elas, era laqueadura ali. Na dura e na rua mesmo, e não precisava mais se falar sobre isso. Eu, por minha vez, fui entendendo o meu sim baixinho, quase calado, a partir do não delas, em brados retumbantes.
Na semana passada, veio ao ar uma reportagem da BBC Brasil sobre as mulheres que haviam desistido de ter filhos por temor as mudanças climáticas. Agora, cunhou-se um novo nome para esse fenômeno: eco ansiedade. Na matéria, uma recifense de 23 anos, estudante de agricultura e engenharia dizia não querer ter filhos por conta do futuro do planeta. "Não consigo me ver como responsável pela vida de outro ser humano, por gerar uma nova vida que se tornaria mais um fardo para um planeta que já está tão sobrecarregado". Dizia ela. Responsabilidade. Fardo. Sobrecarga.
Após a leitura da matéria, escutei o podcast Angu de Grilo, no qual o primeiro bloco inteiro foi consagrado para o tema: natalidade na crise climática. Nele, a jornalista Bela Reis alertava sobre os verdadeiros culpados das mudanças no clima, e sobre os discursos de ódio travestidos na ideologia child's free que recaia sobre crianças e mulheres. "Essa justificativa que acha que a solução para o planeta é ter menos gente é muito perigosa (…) porque você acaba justificando a morte, você justifica o genocídio, o controle de natalidade forçado (…) Se o problema do mundo for os novos nascimentos, você tá liberado para fazer o que quiser (…) Caia esse pano, acordem, não caiam nessa”, dizia Bela.
Após o véu caído, ela reiterava sobre a importância de dissociar dois fenômenos: a decisão de não ter filhos e a preocupação climática, que podem atuar em paralelo, ou não necessariamente. Dessa forma, a primeira deveria ser fruto de uma decisão individual, já a segunda estava circunscrita a uma camada coletiva. A podcaster também nos convidava a repensar o lugar de "superioridade moral” daqueles que haviam decidido não ter filhos pela justificativa ambiental, abdicando, assim, de bancar suas próprias decisões individuais. Logo, Bela convidava a franqueza e sinceridade: "eu não quero ter filho, porque eu não quero, porque eu não tenho coragem, porque eu tenho medo, e isso é legítimo, isso é a coisa mais importante. Não ter filhos, seja o motivo (individual) que for é uma decisão absolutamente legítima", dizia a influenciadora, com o alerta, só:
“Não transfira essa culpa, essa responsabilidade para outras pessoas (…) Tem que sustentar as nossas decisões e não terceirizar para uma ideologia completamente nociva para o lugar social das mulheres e das crianças, que exclui, e fomenta ódio”.
A jornalista e economista Flávia Oliveira, mãe de Bela, logo após, trouxe três recortes a mesa. O de gênero,"essa reportagem entrevistou algum homem? Então podemos acabar o debate aqui e agora". E o de renda, "onde estão as altas taxas de natalidade? quem está propondo e quem estará sujeito? porque os países do chamado Norte já tem taxas de natalidade muito baixas, inclusive, muito deles compensando isso com a migração (…) e você observa uma maior taxa de natalidade de países que provêm do Sul Global", disse a economista de ancestrais balantos. Por último, complementou Bela e ressaltou o recorte de raça, indispensável nessa roda, com uma matéria também da BBC sobre o racismo ambiental que assola a população preta e parda no mundo todo.
Em tempos de ansiedades, cataclismos e apocalipses, penso que urge a necessidade de saber onde plantar nossos corações e mentes. Porque se os brancos experimentam pela primeira vez a queda, os povos originários já possuem um ampla parábola de conhecimentos sobre o assunto. Em Ideias para adiar o fim do mundo, por exemplo, Ailton Krenak projeta a visão de paraquedas coloridos que não eliminariam a queda, mas tornariam a nossa viagem mais prazerosa aqui na terra, e no sonho.
“De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza “estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro”, mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada” (2019, p.32).
Penso ser muito bonito o nome Krenak significar “cabeça da terra”. Evocando um passado-presente-futuro de um povo que sempre se dedicou ao que moldava os seus pés. “Esse é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. O que as nossas crianças aprendem desde cedo é a colocar o coração no ritmo da terra", já diria Ailton em seu livro o Futuro ancestral. Por isso, a necessidade de esticar o céu e alcançar a terra, diante de um fim do mundo que não significaria a extermínio da humanidade, mas sim a extinção do prazer, “esse prazer extasiante que a gente não quer perder” complementa Ailton.
O fim do mundo nunca foi uma opção ou um alarde para os povos originários brasileiros, justamente por eles viverem o fim do mundo há cinco séculos nessa terra. Citando Nego Bispo, que se encantou nesta última segunda feira, mas permanece vivo mesmo enterrado, a vida é um início-meio-início. Para ele, quem desejasse se associar ao pensamento quilombola, bastava conversar com a geração avô - “e quem não tiver avô, que peça emprestado os avós dos outros":
“Na sociedade eurocristã monoteísta a geração avó não tem valor. A família é entendida como mãe-pai-filho. E isso tem um fundo bíblico, porque Deus é pai, mas não é avô. A cosmologia desse povo tem começo, meio e fim. Nós temos começo, meio e começo de novo. A sociedade eurocristã coloca o avô no asilo e o neto na creche. O povo quilombola respeita os mais velhos e as crianças” (2023).
Precisamos urgentemente romper com os esteriótipos ligados as mães que fundamos na minha geração, e me coloco nesse comboio. Lembrar que não se vem, se volta. E, retomando a Bela, "chegamos até aqui porque as pessoas acreditaram”. Não deixemos o vislumbre do nosso futuro ser convertido em créditos de carbono.
No mais, empurrar o céu, pisar na terra, e salvar o sonho. Me parecem bons guias.
Se cuidem, e protejam nossas mães, avós, avôs e rebentos.
O futuro é próximo, se muito próspero.
Essa newsletter é uma homenagem a Bela Reis e Flávia Oliveira que tem sido a minha faculdade há quatro anos com o podcast Angu de Grilo. Obrigada por todas as aulas de axé, cuidado, ancestralidade, e informação de qualidade.
À Flavia, por ter sido minha mãe no jornalismo, mesmo que não saiba, e por ter me ensinado tanto sobre os seus saberes que se alastram em gerações à fio. E à Bela, por sua importância na minha jornada com a maternidade aos vinte e poucos. Pelo afago ao meu sim, mesmo que, por enquanto, calado e silencioso nessa etapa da minha vida. Obrigada por acreditarem, me recordarem da crença e me trazerem esperança e propósito.
As minhas amigas do peito, e mães de ventre, Letícia, que me ensinou que quem vive o grande, conhece o pequeno, e Amanda, que com toda sua honestidade vem conduzido sua gravidez de uma das maneiras mais corajosas que já vi, aprendendo a amar aquilo que é inesperado. A existência de vocês faz parte de mim.
E por último, mas início, a minha mãe, que me ensina que o contrário da perfeição é a realização, e que as filhas são sempre filha das filhas e mãe das mães. Amo você.
Indicações da semana:
📖 Indicação de livros: Ideias para adiar o fim do mundo (Ailton Krenak), Futuro ancestral (Ailton Krenak) e A vida não é útil (Ailton Krenak)
🎧 Indicação de Podcast:
Indicação de filme: Madres Paralelas - Almodóvar
PS: Sinto muito falta de realizar clubes do livro. O último de Clarice, colho frutos até hoje, e penso se não seria o momento para fazer mais um. Irresponsabilidade e maluquice completa da minha parte, visto que defendo minha dissertação ano que vem. Mas, talvez, fizesse sentido. Me deu prazer imaginar isso: um clube do livro para ler todos os romances de Virginia Woolf. De janeiro a setembro, quando acabo a dissertação, e meu mundo se reconfigurará do zero. Pensamentos altos. Existirá coro para isso?
Ser mãe, é sonhar o impossível, é amar ao mesmo tempo que se desgruda do ser que nasce, cresce e realiza sua jornada rumo a uma nova vivência. Ter família, bisavó, bisavô, avó, avô, pai, mãe e filhos é um ideal e sonho que deveria povoar as mentes no lugar de violência, catástrofes e apocalipses. É a esperança substituindo o medo e a ansiedade. Te amo Bia
“Você se torna adulto, quando começa a ver os seus pais enquanto adultos, e começa a se ver enquanto pai.” uma verdade tão crua.