#44 a característica que mais gosto em um homem
Proust, Iza, Ingrid Santa Rita e o capital sexual
Manhã de praia, deitada em sol, percebi que existia um homem me encarando. De bruços, chegava até os meus pés a rebentação, e seu olhar encrostado em pedras. Era o único vestido em meio aos seminus, e me observava como se eu precisasse tirar mais roupas. Cedo se rastejou, cheio de interrogação. Nome, idade, nação. Logo, vieram os convites, para a minha toalha, corpo e talvez uma refeição.
Depois de tréplicas e respostas em não menor e não maior, se foi. Até que meu rosto de mulher encontrou um outro rosto de mulher. Maria Helena. O bom de envelhecer é que não existe mais isso, minha filha. Você fica invisível. Órfã desde os quatorze anos, precisou ser independente cedo que cedo. Casou, teve dois filhos com nomes de cantores de jazz, e se divorciou, porque quando não se é, não se é.
Trocamos e-mails, e prometemos enviar mensagens uma para outra. Helena não possui redes sociais, e lê o Jornal das Letras, Artes e Ideias todo os meses, com especial atenção as crônicas da última página. Me indicou a livraria Galileu, em Cascais, e me disse que em Portugal só existe gente e mar.
Foram quatro horas de conversa em meio as pedras.
Na mesma semana, fui pega boquiaberta na minha última sessão de terapia. Investigando há alguns anos, o porquê de certas repetições, e porque não dizer padrões, entendi por um dos ângulos possíveis, a minha obsessão por fotógrafos. Indivíduos com um terceiro olho no meio do umbigo. Câmera em riste. Percebi que inconscientemente os escolhia no meio da multidão, porque queria ser eles. Seres que transitavam mundo a fora sem o perigo de serem deflagrados. Observadores e não observados. Invisíveis. Invencíveis.
Não faz muito tempo que entendi em corpo, que mulheres na mesma posição, não ocupavam o mesmo espaço. Enquanto homens refletiam olhares como espelhos, às mulheres caberia o lugar de absorver as miradas, que nos capturariam a imagem do eterno desejo. Não existiria espaço para o ser sem corpo. Para o observar sem absorver. O que me fez pensar que se Bourdieu pintou os quatro capitais: social, econômico, cultural, e simbólico, ele com certeza, em sua condição masculina, esqueceu do último: o capital sexual.
O capital sexual que expõe meninas de onze anos a exercitarem caretas a homens bêbados ou sóbrios que já sexualizam seus corpos no meio das ruas, no meio das curvas. No meio das pedras e no meio dos mares. Não há espaço para ser, sem um corpo que antecede. A condição que faz uma mulher agir contra uma outra mulher grávida para se promover em seu capital sexual para mais e mais homens a consumirem, como ocorreu na traição do jogador Yuri Lima, e da cantora IZA.
O capital sexual que nos deixa sem espaço para ser, sem um corpo que antecede. Em nossas próprias casas, camas, e parceiros, com o debate que reacendeu o tema do estupro marital com a ex participante do reality show Casamento as Cegas, Ingrid Santa Rita. Em um crescente de pavor, a mesma relatou que dormia sem roupas com o marido, depois apenas com roupas de baixo, logo com roupas de cima, e finalmente, no sofá da própria casa para se proteger das investidas de um marido que parou de enxergá-la enquanto pessoa, e só a via enquanto um corpo.
O capital sexual que nos tira do campo do consentimento, e nos congela em culpa e remorso por toda a vida, como a personagem interpretada pela atriz Juliana Paes, na série-novela Um Pedaço de Mim, disponível na Netflix. Na obra inédita, Liana, apenas no terceiro episódio consegue pronunciar em voz alta a palavra exata sobre o crime cometido contra a sua vida: estupro - e mais dezoito anos para falar com seus dois filhos sobre o passado que assombra sua vida.
Assim, completamente exaurida pelos acontecimentos dos últimos dias, com o estômago revirado, e trocando almoços por uvas, pude finalmente responder a segunda pergunta do questionário Proust, com um clareza nunca antes vista:
Qual é a qualidade que mais gosta em um homem?
R) Que o mesmo me enxergue primeiro enquanto pessoa, e depois mulher.
No mais, que não precisemos envelhecer para nos tornarmos invisíveis. Na verdade, que continuemos cada dia mais visíveis e atuantes, até que nos caía o véu da indiferença. Que lutemos e descansemos por um mundo que observe mulheres como pessoas, e não as absorvam enquanto um corpo fêmea. Que tenhamos espaço para ser, sem um corpo para nos anteceder.
Até uma próxima. Se cuidem e não deixem passar,
Indicações da Semana #14
▶️ Indicação de vídeo e livros: Vídeo sobre as minhas leituras de junho: um mês muito experimental, romântico e amoroso *olha ela*, como sempre deveria ser. Por lá, assim como por aqui, eu encontro os melhores comentários e as trocas mais gostosas <3
chamadinhos especiais
Insuportavelmente chique, eu tenho a honra de anunciar a vocês que agora eu sou uma parceira Escrevedeira. Sim, o espaço cultural criativo dedicado a escrita e ao desenvolvimento literário - fundado por ninguém mais, ninguém menos que Noemi Jaffe 🥲. Juro que tremo enquanto escrevo essas palavras, muita mais muita emoção de estar ao lado daqueles que admiro de todo meu coração.
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▶️ Indicação de Série/Novela: Pedaço de mim - Netflix - Mais um dos catalisadores para a escrita da newsletter de número #44. O corpo de Liana (Juliana Paes) é completamente deflagrado enquanto capital sexual dos homens da série, e culpa, muita culpa. Mas a produção da obra é excelente, com uma escolha de elenco impecável, que me fez ter um gostinho do que era ver novela brasileira e gritar FDP! em alto e bom som para uma televisão. Aconselho por demais, demais.
te encontrei perdida no meu email e não sabia que era você que eu procurava
Acordei sábado de manhã e foi a primeira coisa que li, que importante e profundo. Parabéns amiga, sempre um sopro de realidade necessário