#21 se escrever é aterrar, setembro é conquista
diretamente de São Paulo, digo: é preciso lembrar e voltar ao que se ama
Dias desses, Luísa me mandou fotos que ela havia tirado de mim, na minha primeira semana em Paris. Há exato um ano atrás. Setembro de 2022. De vestido jeans e casaco vermelho. Em pleno Quartier Latin. Observei aquelas imagens que capturavam o sol cálido de fim de verão e me emocionei. Tentei então, regressar ao futuro que aqueles olhos enxergavam.
Olhos de esperança, podendo finalmente ver a cidade luz depois do túnel de Covid19. De morar pela primeira vez sozinha, tanto tempo, fora de casa. Eu não tinha medo nenhum. Tinha uma certeza em algo que me esperava. Que eu precisava passar. E esse sentimento só cresceu em mim, quando me dei conta de que era uma das primeiras mulheres da minha família a sair da casa dos pais sem ser para se casar. Achei isso gigante. Continuo achando. Corria atrás de sonhos de criança, amigos, e antepassadas.
Em um ano aprendi muitas sutilezas. A força de uma conversa com um amigo. De um sorriso dado a um estranho. Principalmente no frio, e estando tão longe de todos. A estar, e se cuidar só. A lembrar do que se ama. A ir no cinema depois do trabalho. A me respeitar. Frequentar feiras. Descobrir tantos saberes investigando sabores. A usar máquina analógica. A me expressar em outras línguas. A saber o que é grande para reconhecer o pequeno.
Sempre tenho em mente que o êxodo é um trauma. Em sua definição mais clara, ele seria uma resposta emocional a um evento que deixou feridas na memória, e no conceito de identidade de uma pessoa. Ao migrarmos, estamos retornando a uma infância até então consolidada. Aprendemos a andar de novo por ruas nunca antes habitadas, a comer ingredientes nunca experimentados até então, e a falar de uma maneira que a língua desconhecia.
O trauma choca na identidade. No confronto e contorno de onde eu vim e onde estou. O ser e o estar. Na Gal que canta nos meus ouvidos quando eu percorro a Boulevard Saint Michel. E na Sueli Carneiro que eu trago para minha aula na Sorbonne.
Identidades que para a maioria de nós, ocidentais, são formadas a partir de contrastes. E quando esse fator se prova a todo momento, na diferença com aquele do lado, é necessário aterrar em algo.
Minha melhor maneira sempre foi pela escrita. Se um dia comecei a escrever e completei vinte newsletters foi por conta de Contardo Calligaris, quando pude ler seu livro Hello Brasil! e me apaixonar por suas divagações em solo estrangeiro. Hoje, escrevo essa “segunda temporada” de news, por Chimamanda Ngozi Adichie e seu livro Americanah, que com sua personagem blogueira e cronista social, muito me inspirou a voltar a escrever aqui.
Ambos os autores traçaram um percurso de êxodo, Itália-Nigéria, para contornar suas identidades em contrastes com o que experienciavam, Brasil-Estados Unidos. Penso que esse tema me encanta muitíssimo, mesmo não sabendo ainda, exatamente, aonde isso pode me levar. Nunca se sabe.
Por hoje, fico feliz de estar voltando.
Para América do Sul, de sol e sal.
E para a escrita - daqui.
PS: Obrigada a todos que escreveram com saudades, e a setembro, que com seu ventos já me levou a Lisboa, Rio de Janeiro, Salvador, Paris & agora, São Paulo.
Dicas da semana:
Dicas de Filme: Black is King (Disney+)
Dicas de série: Cangaço Novo (Prime Video)
Dicas de livro: Americanah (Companhia das Letras)
Bonito ler isso, gosto do seu jeito de olhar pra vida, de estar atenta a tantas sutilezas. Me faz lembrar de ser assim também, nesse turbilhão que é viver. Migrar é mesmo um trauma, uma passagem pra um vazio (de possibilidades). E obrigada por me lembrar que escrever é aterrar (e estar atenta ao grande e ao pequeno).
Emocionante, em cada palavra o sentimento de uma alma que se aventurou em outros mundos. Amei, nunca deixe de escrever e expressar com tanta clareza sentimentos tão preciosos.