#46 a quebra que permite aos novos ventos saberem por onde ir
afetos e atravessamentos agora do mesmo lado do oceano, quem vê o oceano?
Sempre gostei de aviões. Seres metade répteis, metade aves. Alheios a todo terreno e profano. Imersos em umidade, com gosto de areia a oitocentos e cinquenta mil quilômetros por hora. Mamíferos carregados de gente em cesarianas explícitas por cada orifício de janela que rompe em azul celeste.
Sobrevoando a água aérea entre Paris e Rio, a minha véspera de setembro durou vinte e nove horas. Meu bilhete de volta era o 34J com direito a vista da janela. A experiência transcendental - tal qual, no cinema, pipoca de manteiga e sal. Mesmo optando sempre pelo diálogo divino, escolhi dessa vez me enclausurar em filmes do catálogo da Airfrance durante todo o vôo. Só fui subir a ventana no pôr do sol. Eram seis da tarde nos meus olhos, e onze da noite no meu estômago.
O astro parecia líquido no horizonte em tons de vermelho que sucumbiam em laranja lava. Fazia turbulência. E com os olhos pousados nas asas do avião, pude acompanhar o movimento do bicho procurando sua homeostase. Reparei pela primeira vez com atenção a existência de uma fissura. Uma fenda rachadura na pele da asa que mantinha o avião em pé, ou melhor, deitado. Em uma pesquisa rápida pude averiguar que aquele risco ajudava no controle do fluxo de ar, na pressurização atmosférica e na drenagem da água.
Seguindo o exemplo do bicho convulsionado que estava inserida, não pude deixar de tecer alguns paralelos com aquela asa. Pensei, logo, que não só era possível como também almejado ao movimento, a rachadura.
Meus últimos dois anos foram muito almejados por mim, um projeto mesmo - Que mesmo pensado e revisitado de diversas maneiras rompeu, por vezes, em surpresas, desgostos e traumas. Penso que teria passado por tudo de novo. Pensando bem, por tudo, não. Mas foram as fissuras e rachaduras que me trouxeram ao pouso que chego no hoje. E o quão claro foi perceber que o movimento insiste mesmo com elas, apesar delas e por elas.
Com os ouvidos estourados, só pude escutar uma voz que me dizia que é a quebra que permite aos novos ventos saberem por onde ir.
Fiz as pazes com tudo, e cheguei no veludo marrom:
Não ligo se faz frio ou faz calor
Hoje, quem me ligar, digo que tô
Nas nuvens de um poeta ou algo assim
Torcendo pra não ser mentira
*
Pousei no Rio - a beleza dessa frase ainda me comove. E convidei uma amiga que me conheceu antes do primeiro vôo para mergulhar em nós, no que houve e no que queremos que haja para nós duas. Antes de Pam chegar, observando o mar, não pude deixar de lembrar de Lóri, personagem de Clarice, que os meus mais amados ousam dizer que é a minha representação literária.
Adormeceu de novo e dessa vez profundamente pois quando com uma espécie de sobressalto acordara já era dia. Olhou o relógio: eram cinco e dez da manhã clara e límpida.
A praia ainda estaria deserta e ela ia aprender o quê? Iria como para o nada.
Vestiu o maio e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo mesma dessa vez. Escura, machucada, cega - como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Nem seria com a sua própria vida, mas com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar.
Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue.
Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos in-cognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Agora, talvez, os escritos daqui serão afetos e atravessamentos do mesmo lado do oceano. Quem vê o oceano?
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O Sol ainda brilha na estrada,e eu nunca passei
Os melhores ventos de setembro à nós, de quem quebra, conduz, e não esquece.
B.
(considere apoiar meu trabalho, caso goste dos meus escritos, também recebo sugestões de conteúdos extras para os assinantes! <3)
Indicações da Semana #16
▶️ Indicação de vídeo e livros: Com as férias em família não consegui gravar o vídeo dos preferidos de agosto, mas já já terá o compilado ago-setembrino. Já viu o último vídeo? Fiz até delineador pra gravar, idos históricos, perde não.
chamadinhos especiais
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Sempre difícil escrever depois de um mês parada, mas a felicidade da volta é inexorável. Prometo não ficar mais tanto tempo sem vir, viu?
que texto impecável, bea. bem vinda de volta ❤️🔥
edição calorosa como uma tarde no rio