Ainda nas férias em Lisboa, decretei um novo mandamento. Naquele mês, apenas assistiria filmes em que o celular não aparecesse em nenhum momento da trama. Explico. Tudo começou com Al Pacino - como tudo deveria começar - ou melhor, com o filme Perfume de Mulher, que eu havia recebido uma recomendação com um tom de urgência para averiguar. Foi amor a primeira vista, ou melhor, primeiro olfato.
Depois de tais sílabas, o frenesi havia se instaurado, e comecei a me aventurar pelo meu mais novo estilo de filme favorito: todos da década de noventa. Com no mínimo duas horas de duração, eles detinham algo em comum. Não apenas eram gigantescos, mas também eram grandiosos. Na resenha do Letterboxd, escrevi:
"Por mim, vivia nos anos noventa, só usava veludo preto e escutava Whitney Houston o dia inteiro. Tem algo nessa década, nos filmes feitos nessa década com o Al Pacino que não me resta dúvidas de que a vida vale a pena ser vivida”.
A obsessão seguiu e logo a procissão se estendeu com Harry e Sally feitos um para o outro (uma roubadinha 89, but who is counting?), O espelho tem duas faces (com o grande amor da minha vida Barbra Streisand), até chegar no melhor de todos: Mens@gem para você. Ou na versão original em anglo saxão: You've got mail.
O título se deu em função da voz automática que os usuários do serviço de e-mail da America Online recebiam, aqui, não simples usuários, estamos falando de Meg Ryan e Tom Hanks. Assim, a história se desenvolve, ambos se comunicando e se apaixonando por mensagens anônimas, quando na vida real se detestam. Ela, dona de uma charmosa livraria de bairro que herdou de sua mãe, ele um empresário de um conglomerado que vende livros - na mesma esquina.
A história é maravilhosa por si só, e quando achei que não podia melhorar, ela entregou luz amarela de comédia romântica, e Meg Ryan chorando feio. Mas o maior gosto que fiquei no final dos créditos do filme, foi a minha profunda devoção aos letteremails.
Longe de colecionar selos, ou ter um endereço fixo por mais de dois meses, a alternativa de enviar cartas aos meus respectivos destinatários, me soava um pouco Virginia Woolf e Vita Sacksville demais. Mulheres que em pleno século XX, trocaram cartas sublimes, regulares, e irônicas por mais de vinte anos. Não me entendam mal, foi justamente o encontro das duas, dissolvido em diversas formas de se relacionar ao longo das décadas e das palavras que me inspirou a escrever os meus primeiros letteremails. Gênero híbrido em que as cartas ganham forma de e-mail. Nunca mais parei.
De lá para cá, passou-se um ano, três destinatários, e três cidades diferentes. Mas sempre, o mesmo tom. Um tom que evidencia uma cadência que sinto falta nos What'sApp rotineiros, com excesso de emojis e memes, ou no profissionalismo do Microsoft Teams. Como chegamos a um tempo que não conhecemos a letra das pessoas que nos relacionamos? Ou não mais nos entregamos a textos que exigem uma maior demora na resposta? Não pelo teor ou seriedade das perguntas, mas pela simples beleza da troca de palavras. Como vibrar por uma notificação de “You've got mail” no começo do dia, se na sua caixa de mensagens habitam dezenas de outras?
Há um tempo comecei a perceber que a minha salvação habitava no analógico. Quando o excesso de horas testemunhando a luz azul dos aparelhos comprometia minha visão e minha enxaqueca, desligava tudo e encontrava refúgio no papel. Na aquarela, nas fotos impressas ou naquelas tiradas por câmera, na escrita afetuosa nos diários, guardanapos, cartas, nas músicas da Whitney Houston, ou em todos os filmes sem a presença de um celular - ou seres perfeitos e formatados na mais avançada tecnologia anti cancelamento. Filmes gigantescos, e seres grandiosos.
No mais, deixo vocês com o meu último filme revelado ainda na minha despedida de Paris. Me mandaram um email avisando que a máquina havia quebrado e que provavelmente demoraria três semanas para consertar. Três semanas em que sonhei duas vezes com o filme sendo revelado sem cores, devido a passagem em demasia da câmera analógica por aparelhos raioxyzes. Até que You've Got Mail.
Tudo isso me lembrou as notas sobre fotografia de Matilde Campilho:
"Afortunadamente a minha câmera avariou. Logo no meio do Verão, coisa boa. Agora não há mais aquela vontade meio incoerente, que vem sempre não sei bem de onde, de fechar certos momentos numa chapa só. Fechar para quê? Estamos no meio da estação certa e bom mesmo é abrir os acontecimentos até ao vértice de um círculo longo, mesmo porque toda a gente sabe que nenhuma circunferência é dotada de vértice. Se não tem vértice não tem final. A minha câmera avariou porque não era descartável, e tudo o que quer ficar em permanência deve quebrar nalgum momento. Veja bem, tudo muda o tempo todo, mesmo aqueles gestos eternos do tipo: romance, família, movimento doméstico, vida selvagem, paixão ou até desprezo. Tudo num ponto se transforma, aí jaz a eternidade". - Ringue (M.C), 2018.
Tantas coisas,
B.
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Indicações da Semana #17
▶️ Indicação de vídeo e livros: Com as férias em família não consegui gravar o vídeo dos preferidos de agosto, mas já já terá o compilado ago-setembrino. Já viu o último vídeo? Fiz até delineador pra gravar, idos históricos, perde não.
▶️ Indicação de podcast: Sempre que sou lembrada por conta de Clarice me sinto uma abençoada, ou como ela gostava de dizer “em estado de graça”.Em uma relação formativa, ela se tornou “uma mãe que só me entende sem esperar nada em troca”, como um amado descreveu. E não foi diferente quando recebi o convite do @novasnarrativasevangelicas para ler o conto Melhor do que arder, presente no livro A Via Crucis do Corpo - "o livro pornográfico de Clarice", risos. A narração e o episódio completo você encontra aqui <3
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Como pode já estarmos quase na edição 50? com quase 2K de leitores por aqui! Orgulhinho no peito, viu?
A euforia da tecnologia nos exauriu, portanto, nada mais justo do que desacelerar e nos entregar aos braços do analógico. Gostei da tua reflexão, pois ando na mesma movimentação e vejo o quanto afastar os olhos da tela tem me ensinado a demorar mais o olhar sobre o mundo offline <3
não sei se foi abstinência, ou se essa bateu mais forte.